A trilogia guapuruvu é uma reunião de livros com diferentes perspectivas que se costuram em torno de um processo de regeneração. São os registros de revida. As histórias têm começo, mas podem não ter fim. Saberemos daqui a 200 anos. Toda semana capítulos novos são publicados. 

PARTE 1: NO TEMPO EM QUE TUDO FALAVA

À vista do guapuruvu: o olho d’água

Avistar guapuruvus: o cerrado dos olhos

A vista do Guapuruvu: os olhos telúricos

1. Andorinha

Seus cheiros se cheiravam de perto. Dançavam aos compassos do forró pé de serra. Silêncio. O aroma de Marine mistura anis, canela, guaco, cedro e arruda. Exala. Do outro lado, glicerina, veludo e mofo. O mundo vê a dança nervosa. Parados se sentirão mais confortáveis. 

‒ Comentei hoje lá com o povo que pelos próximos meses preciso emprestar a força de uma capivara – iniciou o mofado como se soubesse que aquele assunto a agradaria

‒ Ah é? por que? 

‒ Eu vou precisar transitar por muitos lugares, sem conhecer direito ninguém. Vou precisar de ajuda e ajudar muitas pessoas. A capivara tem essa serenidade, as boas relações com um monte de espécies diferentes. Mas, se for preciso, ela corre bem e nada bem. É um ser socialmente meio anfíbio. Acho que preciso disso. 

‒ É raro alguém acertar assim seu animal.

‒ Como assim?

‒ Nós temos animais de poder que..

‒ Não, isso não tem nada a ver com animal de poder, é  temporário… é uma alegoria. ‒ ela olhou estranhando aquela interrupção abrupta na sua fala.

‒ Tá, mas eu estou falando disso e normalmente as pessoas erram bastante porque elas projetam o que elas querem ser e não o que são. 

‒ É isso, essa é a diferença, eu quero, esse ano, ser como uma capivara, porque preciso de alguns dos seus atributos ‒ ele ri de nervoso

‒ E eu ajudo as pessoas encontrarem o que são. Tenho bom faro pra isso

‒ Porque você é uma cachorra? 

‒ Não vou te contar quem eu sou, mas eu costumo reconhecer muitas aves nos outros. Aquele aí ‒ ela aponta com os olhos para um ser há alguns metros ‒ é uma garça, sem dúvida! 

Ele notoriamente achava aquela conversa muito esotérica e não via caminho para dissuadir Marine do assunto. 

‒ Olha só! ‒ seu falso interesse era notório ‒ porque você não vai me contar o seu? Qual é? 

‒ Não posso te dizer. Qual você acha que é? 

‒ Mesmo que eu diga, você disse que não pode dizer se é ou não. Então não adianta eu tentar.

Ela meneou a cabeça como se concordasse ou assentisse à falta de insistência vinda da outra parte. 

‒ Mas eu olho para você e vejo uma outra coisa, embora capivara também. 

‒ O que? 

‒ Uma andorinha!

‒ Olha!  ‒ desta vez seu entusiasmo foi legítimo ‒ o que você vê?

‒ As andorinhas andam muitas distâncias sem descansar. São extremamente resistentes, apesar de pequenas e se mudam com facilidade. 

‒ É, faz sentido… gostei! Sou uma andorinha. Pode me chamar de andorinha! ‒ ele sorriu lisonjeado.

 

1. Formas humanas com raízes

Enquanto o cheiro de incenso inundava o ar, você se perguntava sobre a sua consciência. E pensar isso te trazia uma percepção diferente do significado de estar no mundo. Embora o seu modo de estar fosse deitado no chão de uma sala à meia luz com um altar ao meio e uma música xamânica tocando no longínquo ano de 2015. Você com os olhos fechados pula de fiapo em fiapo de pensamento para atestar e afiançar a sua existência. Mas no menor descuido de atenção e a Chacrona e o Mariri  já te levavam para outro lugar. 

Você flutua lentamente em um espaço vazio. Totalmente vazio e sem cores. Sua flutuação também te leva para frente. Lá adiante você percebe uma forma triangular pequena que aos poucos cresce aos seus olhos. Este triângulo é um portal que leva a um outro lugar colorido como as nebulosas estelares. É sem dúvida a sensação de deleite mais verdadeira e genuína que você viveu. O triângulo vai aumentando conforme você se aproxima e parece que a música te embala neste gozo. Tão logo você ultrapassa esse portal, o lugar volta a ficar escuro e você desce como em um mergulho no nada até que se aproxima do que parece ser um chão. 

Há formas humanas neste chão. Mas elas não têm olhos,  nem orifícios, nem pelos ou cabelos, ou orelhas. Suas peles são tênues membranas brancas e não parecem haver órgãos dentro como as águas vivas. No lugar do que seriam os olhos e os ouvidos destas formas humanas existem rizomas escuros como raízes ou veias que se espraiam pela pele. As mãos e os pés são também raízes presas ao chão e conectadas entre si. Estas formas humanas se movem como uma plantação sob o vento. Sem sair do lugar, mas como se dançassem uma música inexistente. Não são seres assustadores. Não parecem ter expressão, sequer de serenidade. Parecem ser o que são indelevelmente. Não há som. ninguém, nunca te diz nada em forma de sons. 

Ao contrário do prazer da flutuação, você agora sente que talvez possa se mimetizar da mesma forma que estes seres e isso não te traz nenhuma sensação prazerosa. Uma certa apreensão te faz resgatar o fiapo de consciência. Você volta a si e sai da cena. A planta te deu uma pequena fresta dela para que você enxergasse o mundo como ela vê-lo.

 

1. Cheiro de terra molhada

O cheiro das fezes dos bichos eu sei o que é. Conheço a serrapilheira das folhas mortas decompostas e os restos de celulose; conheço os muito tipos de fungos e micorrizas; conheço a miríade de matéria mineral; conheço silicato, o quartzo, o grão de areia e seus filhotes de argila; conheço a água, conheço o nitrogênio, o potássio, o oxigênio, o alumínio e o manganês. Mas coloque diante de si um punhado de terra. Porque chamar esse universo por um único nome, se são tão diferentes as suas pequenas coisas e funções? Por falta de criatividade talvez? Uma planta conhece cada um destes agentes com a palma da sua raíz pois a diferença mínima de um ou de outro altera a sua vida. 

A terra ou o solo, neste sentido são como a humanidade, a floresta, o corpo, o mar… são palavras para se referir a coisas que nunca são iguais em sua natureza. E, como palavras, existem apenas no universo da imaginação. Apesar disso, sabendo que solo é apenas uma palavra sem existência concreta, sempre tive a curiosidade de saber de onde veio tudo isso. Basta olhar para baixo, na maioria das vezes – ainda -, e se encontra um chão feito de terra, ou de gramínea sobre a terra. Esse microcosmo de milhões de seres e trilhões de indivíduos veio da onde? 

Tudo que está num punhado de solo – tudo mesmo! – veio de uma estrela. Mas para saber mais desses elementos, somente perguntando para cada ser da terra as suas histórias. Não para cada molécula ou átomo, claro, mas para os seus congêneres e seus conjuntos. Afinal de contas, em uma simples gota de água, há átomos originados em inúmeras estrelas. Cada átomo desse tem sua história para contar com seus parentes de estrela, mas uma vez vindo parar neste planeta, foram apagados para se tornarem apenas um pedaço de matéria que realiza funções. Humano demasiado humano o jeito humano de olhar para a matéria. Enfim, eu divago demais, mas a culpa é das palavras e suas regras. Seja como for, me interessa essas historietas. A matéria que faz a terra, faz o alimento, que permite o resto. E, se a lupa for no universo telúrico e escuro do solo, tem mais lutas, dramas, romances e conflitos do que toda a história da literatura e do entretenimento. É que os humanos costumam se interessar apenas por eles mesmos ou aquilo que julgam criar, incluindo conhecimento. Mas, para fazer jus ao que disse à pouco: não existem humanos. Existe o Eduardo, a Glória, o Marcos e tantas outras coisas não humanas em seus interiores. 

 

2. Aguentar a dor

Num dia se está enfadada com adolescentes imaturos do colégio, e no outro, em uma sala de aula universitária, se apresentando e ouvindo pessoas nunca antes vistas falarem de suas trajetórias. Pessoas muito bonitas, com vitalidade nos olhos e braços leves. Falavam com entusiasmo, paixão e alegria sobre o papel que o cinema, o teatro, a pintura, a literatura, a música e sobre como as aulas de educação artística no colégio fizeram olhar o mundo de maneira diferente. Ali, naqueles primeiros dias de um novo portal no universo, tudo era interessante. Na universidade, a paisagem engoliu Marine e quando se viu, o pertencimento aos longos fios de vida estavam pululando dentro de si. Começou a enxergar as pequenas coisas como as tarrafas de forma genuinamente poética. Junto com uma sensação muito peculiar a qual costumam chamar de orgulho e que, para ela, se assemelhava à plenitude de estar em algum lugar. Contudo, tal qual os ciclones – comuns naquela costa sul -, que derrubam milhares de árvores quando passam, a graduação lhe trouxe um ciclone pessoal que enevoou sua alma. A vida universitária em uma cidade pequena mistura duas substâncias imiscíveis. Como azeite e água que podem parecer uma só quando agitadas, mas é apenas uma impressão. Na maioria das vezes, explorar festas, pessoas, corpos e viver em uma cidade pequena não cabem na mesma frase. Festas, shows e viagens são os momentos em que a mistura é chacoalhada. Um evento de alguém, que conhece alguém, que chamou. Um pouco de vinho cujo estômago desconhece. Uma banda de pop rock tocando skank. Um desejo intenso, um decote, um cabelo solto e um cantinho escuro bastaram para que sua virgindade fosse embora logo no início da graduação.

Guilherme lembrava o mosqueteiro dos livros.  Andava como um alazão sem pressa. Um bigode muito bem cuidado, os cabelos ondulados que chacoalhavam fácil no vento litorâneo. Um aprendiz de violeiro mal cantador que mesmo assim espalhava carisma rindo de si. O encontro entre o sorriso dele e o sorriso dela foi instantâneo. Tinham simetria. Nos bancos do fundo da festa quando alguém bola um tabaco e o barulho da música parece distante eles se cruzaram. Ela viu no sorriso dele uma familiaridade de si própria e ele idem. Um primeiro encontro de sorrisos cruzados que depois buscaram olhos. Entrecruzados por conversas de outras pessoas

‒  Você é de que curso? – perguntou Guilherme ao seu lado

‒  Artes.

‒  Nossa, não parece, que legal? Imaginei que fosse de Ambientais.

‒  É? Porque? As pessoas têm cara de curso?

‒  Não sei… foi só uma sensação ‒ ela não deixou pensar que talvez essa impressão do rapaz se desse por conta de sua aparência. Mas naquele momento isso não a desagradou. ‒ Eu sou da letras e muita gente diz que eu tenho cara de quem é de letras.

‒  Eu queria ter entrado em letras.

‒  Capaz! Você seria minha bixete.

‒  Que ano você está?

‒ Sou da turma 2014. E porque você mudou de ideia? Não tinha nota, essas coisas? – ele definitivamente a estava julgando pela aparência, mas travestido de uma pessoa interessada. Seu sorriso irradiava quando visto de perto – ou sei lá… deu a louca?

‒  Não sei… mas tô feliz no meu curso. Tem muita gente legal.

‒  Bah! E qual seu nome, mesmo?

‒ Marine. ‒ Sua pele era uma represa de hormônios e apesar de ter consciência daquele papo estranho, e estar levemente alterada, ela não ligou. Queria ficar com aquele moço e via que era o desejo dele também. – e o seu?

‒ Guilherme! Prazer – estendeu a mão – me diz uma coisa… assim, sem pensar muito… o top três dos melhores livros que já leu na vida! Já que você quase veio para Letras!

Ela soltou a sua gargalhada aberta e um pouco nervosa. Não estava preparada para esse tipo de conversa e isso a distraiu. 

‒  Tá, calma.

Ela varreu seus pensamentos para criar a lista, mas o álcool e os hormônios afetavam sua memória e seu juízo de classificação literária. Enquanto isso, ele seguia mirando seus lábios.

‒  Já sei! – era mentira, pensou em algo que pudesse impressionar o jovem 

‒  Diga lá! Quer um gole? – ela aceitou sem saber que era Campari puro com gelo. Fez careta.

‒  Credo! Que coisa horrível!

Ele ria como se orgulhoso da tolerância ao amargor. Mas para ela, era apenas um desperdício de dinheiro tomar algo ruim. Além do fato de que, beijar alguém com aquele gosto na boca pode ser horrível. Contudo, como ela mesmo já estava com aquele gosto na boca, menos mal.

‒  Qual é o top três?

‒  Sim. Então – exitou um pouco – Manuelzão e Miguilim

‒  Nooossa! Que livraço! – ele nunca tinha lido. Sabia mais ou menos a história.

‒  Eu amo o Miguilin! – e franziu o rosto como quem faz à um cachorro filhote – Ele é muito lindo. 

‒ Nossa, aquilo é mágico! Começou bem!

‒ Ah, eu acho que é o meu favorito. É muito bom. – Ela de fato tinha gostado, mas na sua verdadeira lista ele não estava. – o segundo é o Um sopro de vida, da Clarice

‒ Caramba! Que lista! Esse eu não conheço. Minha mãe, quando eu era pequeno disse para mim que um homem pode até ler Clarice, mas só as mulheres vão entender. Eu só li laços de família e o da Macabeia pro vestibular. Acho que não entendi muito bem. Falam que o Fernando Sabino é parecido só que o inverso. Tipo…

‒ Entendi… sei lá… eu li o grande Mentecapto e gostei muito… não sei essa coisa de homem e mulher… sei lá. Eu conheci Minas Gerais inteira lendo aquele livro.

‒ Ah, eu acho demais! E acho que tem umas coisas ali que faz muito sentido pra quem é homem… mas sei lá. E o último?

‒ O último… deixa eu ver… ah, sim! Virgínia Wolf! As horas! – dessa vez ele não falou nada, só abriu mais os olhos surpreso. Também não era verdade, sequer o nome do livro ela acertou. Ela não o havia terminado de ler, achou muito pra baixo, não se conectou, mas gostara do filme “As horas” que era em torno do livro Mrs Dalloway. Sabia que Virginia Wolf era uma cartada de impressionar e ele também dificilmente teria lido para iniciar uma conversa mais profunda sobre o livro – esse livro precisa ser lido em um estado de  espírito apropriado – essas palavras saíram de sua boca como saem de uma pessoa qualquer se fingindo de especialista em um canal do youtube.

Transaram. Naquela noite mesmo. Ela não disse que era virgem. Talvez ele tenha percebido. Doeu. Mas a represa de seu corpo guardava muita lascívia ao longo dos anos e Guilherme era muito atraente. Seu corpo magro, viril, a pele lisa, a tatuagem de arraia na costela e o pênis bonito. Ela tentou parecer experiente e não demonstrar dor. Depois de um tempo ela já havia se acostumado à dor. Essa era uma habilidade que ela sempre julgou possuir. Até aquele momento da vida. Com o passar dos anos, entretanto, após a ida de Guilherme, foram mais raras as suas experiências sexuais e afetivas. Havia algo dentro dela que ainda não fora descoberto. 

 

2. De onde viemos

Antes de haver se criado, Nhanderu sustentava o vazio. Depois ele desdobrou o espaço-tempo e os ventos. Logo depois viram o fogo, a neblina e o colibri, forma pela qual ele poderia assumir quando quisesse. A coruja veio para guardar a escuridão e os segredos. Depois criou Ñanmandu, o pai dos humanos e o seu principal fundamento: o amor. E criou os seres dos trovões Karai, Jakaira e Tupã que viriam a ser os pais das almas para os humanos. Dançaram em meio ao fogo e a neblina para criar a Terra. Criou então uma palmeira eterna em cada uma das moradas dos pais das almas e mais uma no centro, para sustentar o sol quando ele viesse a existir.  Até hoje os pais das almas sustentam o céu nas quatro regiões. Nhanderu no nascente do sol, Tupã em poente, Karai à direita e Jakaira à esquerda.

A serpente foi o primeiro ser a andar nessa terra. A cigarra vermelha depois. E então veio a água. As matas e campos foram espalhadas pelo colibri. E os primeiros seres a cantar no mundo foram os Inhambus. E para conhecer embaixo da terra Nhanderu criou o tatu. Assim, com a fertilidade da neblina de Jakaira, o fogo de Karai, os ventos de Tupã, o espalhamento do colibri  e o poder de Nhanderu os outros seres foram criados. 

As principais criações, que sustentam toda a existência sendo sagradas foram: o milho verdadeiro, a batata doce, a mandioca, a banana, a mexerica, o mel, o cipó, a imbira e o jerivá. Os principais animais foram o bigato, o porco do mato, a onça, a sucuri, o tukano, o papagaio, o jacu e o urui. E criaram também os peixes bons como o bagre, a tainha, o lambari e o pirati. Depois vieram as raízes coloridas, as verduras, as ervas de cura, o abacate, o abacaxi, o limão, a laranja, o eucalipto e o pinheiro. E depois vieram os animais impuros. Depois os brancos (juruá) e suas criações. Estava povoada a Terra. 

2. Calendário Terra

Se a história do chão fosse traduzida em um ano no calendário gregoriano, os 4,5 bilhões de anos que o planeta tem, cada mês teria aproximadamente 375 milhões de anos, cada dia teria 12,3 milhões de anos; cada hora, 513,7 mil anos; cada minuto, 8,5 mil anos e cada segundo teria 142 anos. Isso significa que até o mês de maio a Terra era aquele amontoado quente de rocha submersa, CO2 e vulcões. As primeiras arqueas surgiram no começo de março e no fim de abril já havia seres fotossintetizantes. Mas as primeiras plantas terrestres só foram surgir no final de novembro (27) após a rocha ter se degradado e se misturado com restos de animais mortos. Do início da Terra até o dia 14 de dezembro, o litoral do Paraná – onde eu moro -, abraçava o litoral da Namíbia e de Angola em um tórrido deserto arenoso. Os dinossauros já circulavam pelo grande e único continente desde o dia 10 de dezembro. No dia 14 de dezembro os blocos foram empurrados pelo magma meso oceânico. Sem brigas ou eventos adversos, cada um para um lado para fundar a sua própria aldeia. O chão rasga criando uma falha de escarpa por onde começa a penetrar o oceano que virará o Atlântico. Quem chega na praia daqui ou da Namíbia consegue ver uma serra grande onde é possível encontrar as formações muito antigas do cristalino magmático, os sedimentos e as rochas metamórficas do “meio do ano”. Com o afastamento das costas,  os recentes litorais eram cercados de vulcões ativos por todos os lados. Terremotos constantes que abalaram as placas tectônicas. Com o tempo, as chuvas e as marés fizeram seu papel de quebrar montanhas. Depois vieram os rios. Não fossem as árvores da amazônia para produzir os rios voadores e a cordilheira dos Andes para criar o corredor de água para baixo, a paisagem aqui era para ser como a dos desertos da Namíbia.  

Ao meio-dia de 25 de dezembro um, um pedaço de ferro original da morte de uma estrela, veio do cinturão de asteroides e colidiu com a Terra no golfo do México. O impacto imediato já destruiu boa parte da vida, mas a nuvem que cobriu o planeta impediu a luz de entrar. Morreram a maioria das plantas e dos seres que delas se alimentam, mas sobreviveram os fungos e alguns animais de sangue quente resistentes à eles. Logo, os mamíferos se tornaram dominantes na Terra. O impacto também ajudou a acelerar o afastamento dos continentes e aumentar o tamanho do atlântico. Às 20 horas do dia 31 de dezembro apareceu o homo erectus e às 23:54 apareceu o homosapiens que nos últimos segundos do dia (aproximadamente 50 mil anos em escala real) se espalhou pelos continentes que antes eram unidos. O atlântico até às 23:58 era 75 metros acima do atual. O morro do escalvado, meu parceiro, era menor e o lugar que eu vivo hoje estava embaixo da água. Aos 4 segundos do último minuto do ano, os primeiros sapiens passaram no litoral paranaense e depositaram os sambaquis. No segundo 32 os Guaranis já tinham formado residência nesta região. Então, às 23 horas, 59 minutos e 56 segundos as naus invasoras de Portugal aparecem na praia. Aí que aparece uma ideia um tanto quanto ingênua, mas perigosa. A de que a montanha, o chão, a terra e o solo de um determinado lugar passa a pertencer a um punhado de gente. A partir daí, para os sapiens invasores, montanhas, terras, solos, plantas, outros sapiens – indígenas – e outros animais passam a ser cavados e remexidos.

3. Migrações juvenis

Era noite de carnaval quando Andorinha quebrou o ovo e saiu da casca. Seu pai viajava com a companhia de teatro na qual trabalhava como iluminador. Sua mãe escorregou na escada e entrou em trabalho de parto num  hospital público perto da avenida Paulista. Ela sempre contava a história com entusiasmo para qualquer pessoa nova.

‒ O doutor Mauro já tinha falado que eu não podia engravidar de novo. Eu tinha um tumor no útero do tamanho de um limão. Qualquer gravidez era de risco. Mas eu não estava nem aí. Engravidei, mas quando ele nasceu o tumor já estava do tamanho de um melão e tiveram que tirar tudo…trompa, útero, tudo. Até hoje eu falo que jogaram a criança fora e eu criei o tumor. 

Rita, já com seus cabelos totalmente grisalhos, o franzino corpo e os olhos ainda vivos e verdes, sempre fazia esse comentário com notória acidez humorada. 

‒ No dia que ele nasceu, o doutor Mauro estava no carnaval de salvador, o Claudio viajando eu estava sozinha e dei entrada no hospital. Na sala que fizeram a cesária tinha uma TV ligada passando o desfile de carnaval e eles ficavam olhando. Fiquei lá, largada no corredor um tempão. Nem cheguei a ver ele. Quando vi já estava internado com infecção hospitalar… todo cheio de pereba… nossa como era feio! Demorou umas três semanas pra sair, depois pegou bronquite e só chorava. Eu falei pra minha irmã: “leva essa desgraça embora!”

Apesar do tom regular de jocosidade, a própria tia já confirmou que isso de fato aconteceu, mas ponderava que a irmã estivesse, talvez, com depressão pós parto. E foi nessa mesma casa da irmã que a família toda foi morar,  com as crianças pequenas. Lá que Andorinha aprendeu o gosto de girino do córrego, a jogar pedra no trem que parava na estação Piqueri, mas também a tomar pedradas e a cuidar de seus machucados. 

Um dia arrumaram as malas e foram embora dali deixando muitas dívidas para trás e indo se esconder no interior de São Paulo. O pai – já sem a companhia da companhia de teatro – alocou duas bancas de jornais no Piqueri. Com a sua costumeira incapacidade de gerenciar dinheiro e a tendência para gastos além do disponível, colocou a família no vermelho com as editoras, marcas de sorvete e de jornais. Fugiram de trem para Tupã, a cidade na qual Rita nasceu.  

Apesar da tenra idade, Andorinha se lembra de quase tudo com muita nitidez. Moraram em um cômodo na casa da avó. Na cidade, contudo, diversos parentes do lado materno da família também viviam. Não eram bem-vindos por conta das grandes brigas familiares envolvendo seu pai. Brigas essas que poderiam ser resumidas por uma única palavra, embora à época ninguém soubesse disso: racismo. Expulsos da casa pela família da mãe, moraram em um quarto de 2×2 metros sem janela nos fundos da casa de um parente distante e, depois, em uma casa abandonada sem cerca, sem telhado, sem luz, sem água, sem piso e sem reboco. 

Com seus cinco anos de idade, Andorinha se divertia como podia e ia bem na escola. No futuro, contaria com uma espécie de regozijo e orgulho presunçoso quando viu sua mãe e seu pai comerem os ossos sobrados dos dois pedaços de frango que ele e seu irmão tinham para jantar. E continuava no mesmo tom, como se tivesse certeza que esse assunto deixaria qualquer pessoa compadecida. E, talvez, essa fragilidade lhe fosse útil de alguma forma. 

‒  Minha mãe conhecia muito de plantas. Só tratava a gente com remédio natural. A gente andava na rua e ela ia falando o nome de cada coisa e pra que servia. Então, nessa época, a gente andava e ia atrás das coisas pra comer. Manga, carambola, goiaba, amora, acerola dava pra pegar, mas muita gente conhece, então era mais disputado. A gente ia para as menos conhecidas tipo jatobá, tamarindo, jambolão, cuca, uvinha japonesa, abiu. Nossa, até hoje eu lembro do gosto do abiu, é muito bom, e nunca mais comi. E a castanha do chapéu-de sol… tinha muito dessa árvore na cidade. Eu saía na rua e catava um monte, ficava a tarde toda quebrando a fruta pra comer a castanha.. era bom muito bom. Salada também a gente pegava da rua com serralha, que dá na calçada. E o feijão guandu que sempre dava nas praças. É tipo um feijão selvagem. Eu não lembro disso, mas minha mãe conta que eu era molequinho, pegava na mão dela quando a gente tava andando e falava: “Mamãe, de fome a gente não morre. A gente come feijão guandu”

Ele imitava a voz fina que sua mãe fazia quando ela mesma contava essa versão da história. A mãe, por culpa daquilo que veio a se suceder no futuro, sempre lembrava deste tempo de agruras com autocomiseração e saudade: “a gente não tinha nada, mas a gente era feliz, porque a gente tinha um ao outro. Depois, a nossa vida só foi ladeira abaixo”. Andorinha sabia exatamente o que ela queria dizer com isso.

3. Sexo

É uma laguna verde cristalina rodeada de dunas brancas e guardada por um nítido céu azul. Você caminha pelos lençóis maranhenses quando se dá conta no ponto em que se encontra, para qualquer lugar que olhe não há pessoas ou qualquer sinal de humanidade. Você está só, vê a lagoa à sua frente e sente imediatamente uma atração. Vai até ela. A água tem temperaturas diferentes e você as sente na sua pele. O seu corpo é percorrido por uma sensação comum, mas não para aquela ocasião. Uma forma originária e voraz de volúpia. Um ímpeto sexual forte e permanente. Não faz sentido, você pensa. É o tipo de coisa que ocorre na presença de outra pessoa ou no silêncio da imaginação, mas também com imagens humanas. Apesar de tudo, você soube na hora que era um legítimo desejo sexual pela lagoa. Aceitou.

 

É instintivo. Você tira a roupa e senta no chão da lagoa tendo todo corpo imerso e apenas a cabeça fora da água. Dali você também sente o cheiro da laguna a um centímetro de suas narinas. Um aroma ferroso de pele de água e algas doces. Da fina camada que divide os mundos fora da água e dentro dela, seu corpo é a ponte que transita entre meios. O vento irregular roça as dunas e beija as lagunas. Com os ouvidos na superfície da água você ouve os sussurros calmos da respiração do oceano Atlântico nos seus tímpanos e os estalidos que ele provoca na água. A língua úmida do lago te lambe os ouvidos e o vento os gelifica. Seu corpo arrepia. Todos os seus sentidos intensificam o desejo. Você é excitado. A água te abraça e você sente o gradiente de temperatura ao longo do corpo. Um vórtice fluido envolve o seu pênis, brincando com ele em um líquido movimento. O vento rufa nos seus ouvidos, move as ondas do lago, que agita seu sexo e faz o sol refletir nos seus olhos. Suas mãos estão fincadas na areia do fundo como ficam nos lençóis de algodão que sustentam o coito. Você não precisa das suas mãos naquele momento. Seu corpo é tomado por um arrepio de ponta a ponta e quanto mais você sente a laguna com seus poros, mas parece ela te devolve. Sua respiração aumenta e os suspiros soam junto com o vento no seu ouvido. É um ato sexual. Transespecífico. Você tem certeza. E ao saber disso seu corpo é libertado de uma moral que ainda o prendia. Um tremor perpassa seus ossos e o gemido seco erupciona do fundo de seus pulmões. O corpo treme. Você goza.  Ejacula longamente no útero da laguna que rapidamente sorve seu semen. Ao abrir os olhos e recobrar o fôlego, o sol te inunda e você descobre que o é um ser diferente do que sempre pensou. 

3. A paisagem é o livro

Quando ouço falar dos Guarani e quando ouço as suas conversas eles raramente se chamam de Guarani. Esse é um nome dado por outros. Esses outros dividem os Guarani entre Mbya, Nhandeva e Kaiowá. Mas os daqui, e de quase todo litoral, se chamam apenas de Mbya. Uma palavra que quer dizer gente. Ou seja, mais uma palavra que nada diz. Mas para os outros, expressa o nome de um povo. Os Mbya são muito religiosos e guiam toda a sua vida para o que dizem os mitos e as palavras de Nhanderu. 

Os mitos para os Mbya constroem a base e o modo de vida. Fundamentam os indícios para construção de aldeias, as almas que cada Mbya recebe quando nasce e de qual região ela é (Nhanderu, Jakaira, Karai, Kuaray ou Tupã). Conforme as condições de nascimento as almas que as pessoas recebem atribuem a elas características e papéis sociais. Os mitos fazem com que estabeleçam relações com determinadas espécies de plantas e animais; que orientam as suas dietas, casamentos, rezas e vida social. A busca pela terra sem males  (yvy marãey) é finalidade primeira da vida Mbya. E essa terra está além do oceano do sol nascente. Por isso o litoral e as ilhas são as moradas destino de todo um povo que se desloca de uma série de aldeias para o litoral.

Isso não significa que os Mbya vejam no mar uma beleza, ao contrário. O mar é o medo e o desafio de transplantá-lo para chegar à eternidade. O mar carrega sempre a possibilidade de uma fatalidade para os Mbya. Há algo de assustador no fato de daquela massa de água estar sempre colidindo com a terra. Por isso, nunca um Mbya tentou navegar. Nunca tentaram tirar seu sustento do mar. Nunca sequer fizeram aldeias literalmente na beirada do mar. Eu também me apavoro com o mar e quando ouço sobre a elevação do seu nível temo pelo futuro, pois estou a menos de um quilômetro da beira do oceano atlântico. Aliás, cada vez mais tenho percebido que eu e os Mbya temos muitas coisas em comum. Tal qual como os meus, os Mbya preferem as encostas e as serras.

4. A mãe

Com os acontecimentos de Tupã, em um raro momento de deixar o orgulho de lado, o pai de Andorinha ligou para sua irmã da capital paulista pedindo ajuda. Ela disponibilizou um apartamento na zona leste. Mais uma vez o pequeno bando de aves se mudou. Na periferia da cidade, Andorinha aprendeu a andar de skate, furtar supermercado, jogar bola, dizer “sim senhor” para a polícia sempre, comemorar uma copa do mundo, tomar banho de chuva e escrever pequenas coisas. Aprendeu karatê e, na sua parceira de kata, a primeira paixão. Com ela, as aventuras libidinais precoces. 

Tanto a mãe, quanto a avó de Andorinha diziam como ele era feio. A avó apenas por sadismo ou desgosto. A mãe por pragmatismo materno apesar de o alertar sobre as armadilhas dos padrões de beleza da sociedade. Aconselhava um filho baixinho, magro e feio a sobreviver no mundo dos afetos. “Você precisa aprender a fazer outras coisas para ser uma pessoa interessante. Música, que nem seu irmão, ou ser inteligente, ou algum talento. Se não, vai ficar ruim pra você namorar no futuro desse jeito”. 

Rita era a última filha de cinco irmãos. Seus pais se casaram quando a mãe tinha dezenove anos e o pai quarenta e dois. Quando ela veio ao mundo em 1955 o pai já tinha 54 anos. Alcoólatra, prendia a mãe em casa. Gastava todo o salário como cobrador da prefeitura na mesma noite que recebia, bebendo em todos os bares no caminho de casa. Chegava de mão vazia, bêbado, acusava a mulher de o estar traindo com o padre, batia nela e depois dormia até que toda história se repetisse. Apesar disso, Rita, técnica em enfermagem, junto com o mais velho dos irmãos, eram os únicos que, no leito de morte do pai, concordaram em lhe levar vinho escondido e deixá-lo morrer ébrio. O pragmatismo médico de Rita com dezenas de mortes no currículo e dezenas de corpos arrumados para a funerária fizeram-na uma mulher forte e resistente. Uma vez, em Itaquera, Andorinha topou na guia e arrancou a unha do dedão do pé fora. Chegando em casa aos prantos a criança ouviu da mãe para ele mesmo lavar, passar sabão, depois secar, colocar merthiolate e enfaixar. Ela não moveu um dedo. Quando, com 27 anos de idade, cansou-se do interior e foi morar na capital conheceu Claudio em um teatro. Em quatro meses se casaram. Em quatro anos veio o primeiro filho e em seis anos o segundo filho.

4. Sinais

Foi apenas chegarem na beira do lago para que uma nuvem grande de andorinhas voasse um pouco acima da água em movimentos rápidos para direções aleatórias com seus piados agudos e curtos se multiplicando. Marine imediatamente te identificou. “Olha quem veio te receber Andorinha! As andorinhas! – é impressionante como tem algo aí.” Você se sentia com o corpo cansado e mirava a nuvem como quem sente a dança nas asas. Ainda assim, não pode deixar de sorrir. Você se levantou e como quem flexiona as pernas para correr, ergueu a cabeça e num salto voou para dentro do bando. 

Os movimentos dentro da revoada são muito rápidos, para baixo, depois para esquerda, logo a seguir para cima. Tudo em um segundo. E você voa sem rumo específico, sentindo a espessura do ar úmido atravessar sua forma como se a segurasse. Tem absoluta certeza que, apesar de voar extremamente rápido, para muitas direções, com os olhos fechados em deleite, não colidirá com alguma das muitas aves do bando. O movimento é parte do seu ser e sua existência não é ader um corpo que voa, mas uma revoada. E é nessa nuvem de quase colisão que as andorinhas se comunicam. São avisos, falas, advertências e comandos umas para as outras. Você não consegue distinguir quem fala o que. A voz de uma revoada não é a soma das vozes das andorinhas. Batendo as asas com força você vai rapidamente para qualquer direção a uma distância muito superior ao tamanho do corpo. De perto, suas companheiras o recebem com desconfiança, mas sem rispidez.  Rapidamente a revoada se afasta, assim como chegaram. E, apesar de querer não mais voltar, isso te faz lembrar de Marine na beira do lago. Num pouso suave logo se sentando, lembra de outra época de sua vida. Quando você estava no Maranhão, nas noites de lua cheia, saíam da terra nuvens densas de cupins voando por todos os lados. Seguida dela aparecia a revoada de andorinhas. Dava para ver, na sua frente todas com os insetos na boca. Elas caçam no ar com uma habilidade enorme. 

Fez-se um silêncio na beira do lago. Até que você se lembrou de algo e contou a Marine que certa vez uma andorinha fez ninho no vaso de babosa do terraço de São Luis. Você acompanhou dia a dia quando ia regar as plantas até que numa tarde quente de sábado encontrou um gavião comendo os filhotes no ninho. Quando a mãe voltou, olhava para todos os cantos e soltava um piado triste e intermitente. Você, olhando para ela, teria pensado: “não foi dessa vez, amiga”. Marine soltou um gemido de asco. 

4. Morro do escalvado

De onde estou, avisto a serra da Prata e mais acima a serra do mar altiva e imponente. As montanhas contam o tempo em eras. Seus parentes estavam na origem hadeana do fogo que forjou as rochas. Na origem do planeta, por 2 bilhões de anos, o magma, os meteoros vindos das estrelas mortas, a água, a atmosfera viviam sorvendo uns aos outros e o planeta era um grande oceano com raras porções de terra. As montanhas viviam embaixo da água esfriando lentamente o magma para formar as primeiras rochas magmáticas. Era um tempo de uma Lua mais próxima, de grandes marés, de dias mais curtos, de alta rotação, de muito mais radiação ultravioleta e de uma atmosfera de dióxido de carbono. Eram noites mais claras, com tudo mais próximo, a claridade da via láctea iluminava fortemente as noites. As árvores nem sonhavam em existir. Para que isso acontecesse seria necessário antes, haver solo e seres transformadores de matéria como a chuva, os mares, os ventos, os ácidos e as arqueas (que surgiram no primeiro bilhão de anos originais). Em pouco tempo, outros seres – as cianobactérias -,igualmente pequenos, conseguiram a proeza de comer dióxido de carbono e liberar oxigênio, tudo mudou na Terra. O planeta enferrujou. Muita água foi para a atmosfera, o oceano baixou e a grande placa dos parentes mais antigos das montanhas emergiu. Por um longo período de 2 bilhões de anos, o suspiro do mundo fez essas placas racharem e se movimentarem flutuando no magma silencioso abaixo da crosta. Por cima delas as chuvas ácidas, ventos e movimentos de marés iam quebrando a rocha originária em sedimentos enquanto os seres recicladores de matéria, nasciam, morriam depositando seus restos no chão.

E vieram tenebrosos anos glaciais onde a pressão do gelo, mais o movimento das placas se separando criaram uma série de metamorfoses nelas, gerando novos tipos de  rochas. Quando o gelo derreteu, a vida explodiu em diferentes formas e variedades. Foi um longo período de prosperidade para o solo e a vida. O tempo de aparição das grandes árvores não chegou aqui imediatamente. Demorou muito, aliás. Sendo o interior de um grande continente em uma zona árida, nem árvores e nem outras formas de vida se arriscavam pelo litoral paranaense. Mesmo já havendo anfíbios e peixes, nesse lugar, ao longo dos 170 milhões de anos que os dinossauros andaram pela Terra, apenas alguns destes répteis e aves frequentaram esse lugar desértico. 

Após a separação entre Paraná e Angola, a dinâmica de correntes, ventos e a mudança gradual de latitude e longitude fez com que o recente litoral conseguisse formar praias, areias e um solo pobre. Com o tempo, a parte do planalto superior passou a receber as chuvas do pântano central do continente e as correntes antárticas. Os rios se formaram no planalto e trouxeram seus sedimentos para a praia. Por sua vez, os ventos litorâneos com seus nutrientes também faziam chover nas encostas. Assim, há 50 milhões de anos a grande mata atlântica se formava. A nossa casa principal. As árvores vieram adornar o esqueleto de rochas deste litoral. Assim que os morros, as serras e as montanhas ganham companhia. 

Na ponta mais próxima ao mar, no início da serra da Prata, está o morro do escalvado. O que está ao meu lado desde que nasci. Do seu pé, avisto a sua ponta. Hoje o morro tem uma curiosa forma triangular diferente dos seus parentes, mas foi preciso muita coisa para que chegasse a este formato naquele lugar, beijando o oceano atlântico. Ele é o último refúgio da metamorfose que passaram as rochas quando o mar se abriu. Foi mais gasto pelo tempo do que outros morros. Recebendo de frente os ventos oceânicos e as chuvas das estações. 

 

O morro do escalvado guardando o litoral e a mata de planície ao fundo

No verão, o sol nasce na praia e, fazendo o seu maior arco, passa por detrás do morro e onde estou recebe com força o sol da tarde. No inverno, o sol nasce mais a norte e se põe sem chegar perto do morro. É a época que recebo luz por mais tempo, embora seja uma curta e fraca luz. O Morro do escalvado é meu companheiro de todas as horas. De seu pé, percebe-se a sua imponência. Do seu topo, avistando a planície litorânea e a cadeia de montanhas para dentro do continente, é possível sentir a pequenez. Assim também me percebo. Como se a grandeza e a pequenez me contivessem ao mesmo tempo.

5. Caráter

Quando tinha trinta anos de idade, Andorinha pegou um táxi de São Bernardo do Campo para uma festa em Osasco – para encontrar uma moça. Com tempo grande de viagem, ouviu do taxista a sua história e, sobretudo, suas reflexões. Dizia o homem ter saído de casa com 13 anos de idade, após uma briga com sua mãe. Foi direto para São Paulo, onde conhecia apenas uma pessoa que não pôde lhe receber. Sozinho, teve que arrumar um jeito de trabalhar, morar e sobreviver. Conseguiu. Infelizmente. Voltou a falar com a mãe 13 anos depois. Fez sua família, conduziu sua vida e sua trajetória na grande São Paulo prescindindo dos progenitores. Contudo, diferente das pessoas que contam estas histórias para exibir o seu mérito vencedor na vida, o taxista contava com uma lúcida e incomum tristeza. Ao fim, entre um olho na pista e outro no retrovisor por onde mirava o passageiro, falou: 

‒ Isso é muito ruim cara.. sabe porque? Porque quem cresce assim desse jeito acaba achando que não existe problema grave na vida. Que tudo se resolve … e o pior, que as pessoas que estão sofrendo por algum motivo, não deveriam estar sofrendo. Entende? Você fica insensível ao que os outros passam.. e isso é uma maldição que ninguém deveria carregar.  

Andorinha, viu naquele momento, na imagem do retrovisor não o passado, mas o futuro. O que poderia vir a ser ele próprio. Ouvia o motorista com silêncio perturbador porque sabia exatamente o que aquele taxista desconhecido falava. A história de Andorinha era muito semelhante à história do motorista. Perdeu a conta de quantas vezes discutiu com pessoas por achar que “aquilo não era nada… que dor mesmo era outra história, que era somente uma questão de vontade”. Ele era aquele taxista, mas sem consciência. E o poderia ser por completo no futuro caso não encontrasse a sua versão no passado. Por isso, naquela noite aprendeu uma lição de empatia que penetrou fundo em sua alma. Algumas semanas depois, por ocasião de uma apresentação qualquer, resolveu exacerbar o seu egoísmo e falar mais de si à sua plateia. Mas, no exercício de redação da sua fala, acabou confessando demasiado sobre si. Escreveu, entre outras,  as seguintes linhas: 


Minha mãe é de uma cidade do interior de São Paulo na qual o catolicismo e o extermínio indígena são marcas profundas. Meus avós por parte de mãe eram imigrantes portugueses e italianos (vô e vó respectivamente) que ajudaram nesse processo de violência contra os Kaingang para o erguimento de fazendas de café. Até a morte de minha vó, era comum ouvi-la falar, mesmo que veladamente, mal “dos pretos”, mas também referindo-se especificamente ao meu pai. Do mesmo modo que costumava dizer que os “índios” de Tupã (a cidade) “comiam gente”. 

Meu pai é nascido no lado pernambucano da região do Quilombo dos Palmares. Sua mãe é uma “índia” e seu pai, um filho de escravos desconhecido. Contudo, meu pai nunca se identificou com sua ancestralidade. Adotado informalmente por uma família alemã, veio para São Paulo e, mesmo sendo educado em bons colégios, fugiu dessa família aos 14 anos e, desde essa idade, se engajou nos movimentos de resistência e luta armada, sendo preso e torturado na ditadura militar. Integrou os grupos de teatro da capital paulista em sua atividade de resistência. Nada do que sei sobre ele veio de suas palavras, apenas por meio de minha mãe, uma das poucas pessoas a quem ele compartilhou sua história. 

Fazendo verdade ao verso de Belchior, sinto que tenho uma mistura de ambos dentro de mim. Lhes agradeço, sobretudo. Em análise fria e, portanto, torta, penso que herdei o transcendente ideológico libertário da resistência de papai, assim como um certo altruísmo difuso (ou mesmo falso) e o orgulho mesquinho. De mamãe herdei a compassividade telúrica de quem sempre passou por provações, assim como o comodismo cristão, ainda que não o seja de fato. 

Morando sozinho desde os dezesseis anos de idade acabei me fazendo ególatra e intolerante psicológico contra os problemas dos outros. Luto diariamente contra todos esses predicados.  Pelo bem ou pelo mal, moldei meu caráter com a absorção prematura das brigas familiares, músicas de Raul Seixas, livros beatniks, mesas de bar e meus amigos, a quem dou a maior importância da vida, acima de tudo.  Meu caráter está longe de ser elogiável.

 

5. Através da luz

É 2007. Você acaba de terminar um relacionamento de três anos, no qual foi a primeira vez que conseguiu falar – em som de palavra – “eu te amo” para uma pessoa, neste tipo de relação. Aos seus amigos e amigas isso seria mais comum, mas à uma namorada, não. Você sempre achou o sentimento de amizade muito maior que o amor romântico. Mas também desconfiava do amor como algo viável. E, impelido pelo término, foi com uma turma de amigos do interior de São Paulo para o litoral. Praia de Martins de Sá. Dois apartamentos no 4º andar de um prédio à beira mar, fora de temporada. Meninos, vinte e poucos anos, violão na varanda, Itaipava, vodka e luau. Três relacionamentos, um casamento e um filho nasceram desta viagem. Não que você tivesse parte nisso. 

Todos estão dormindo. Você, depois de um dia de álcool, pega o maço de cigarros, duas Itaipavas, vai até a varanda, e fecha a porta para não acordar ninguém. O vento sopra do Atlântico no seu rosto e esfria um pouco a sua pele. Sempre que a fumaça de determinadas plantas entravam no seu pulmão, essas plantas passavam a operar a máquina da sua existência. Seja nas suas volições e por onde seu corpo se movia, seja pela realidade. O grande silêncio da madrugada faz saltar o barulho da cerveja descendo pela sua garganta. Você está parado na esquina da varanda quando repara no prédio abandonado do outro lado da rua. Ele também olha para você. A luz amarelada da rua penetra entre as paredes desnudas do prédio e dá vida a ele. 

Do outro lado, também no quarto andar, há uma moça de vestido branco na beira de uma poça de água, ou lago. Está escuro e ela está escondida na penumbra. Ela está de cócoras mexendo em algo e você não consegue enxergar seu rosto. Parece paralisada a ponto de você duvidar tratar-se apenas de uma imagem, como essas que se pintam em paredes. Há algo ao lado dela, no chão, à margem do lago. Enquanto você se esforça para distinguir aquilo, talvez distraído, talvez crente de se tratar de uma pintura, a mão dela se mexe. 

Você se assusta! Seus olhos saltam e um ruído estranho tenta se projetar no fundo de sua garganta, mas nem chega a existir. Ela solfeja  uma música e sua voz é aguda. Deve ter por volta de 18 anos, talvez menos. Você se esconde por detrás da sombra da luz de mercúrio. Esfrega os olhos mais de uma vez, para se certificar que aquela menina está de fato lá. Ela continua, como se soubesse estar sendo observada. A coisa na sua mão é uma roupa. Ela está lavando roupa na beira do lago como se sua imagem estivesse presa em um quadro de Renoir. Você só consegue olhar, como um voyer escondido, aquela menina em sua tarefa. É quando o mar sopra uma rajada e derruba a lata de Itaipava no chão fazendo um estrondo que parece rasgar a madrugada. Ela imediatamente levanta os olhos. Mas parece não te ver ou temer nada. Solfejando, ela recolhe as roupas, se vira, e vai embora sem olhar para trás. Você fica sozinho com seu cigarro olhando o outro lado da rua e seu vazio. Prédios abandonados são ao mesmo tempo assustadores e belos. 

5. Ciclos

A vida em lugares assim é mais regular. Às vezes ciclones, às vezes uma chuva acima do normal. No inverno o nevoeiro frio e a primazia dos fungos. O sol aparece todos os dias desde que o mundo é mundo. Há épocas do ano em que ele faz um caminho mais longo, fica mais tempo sobre nós e tudo aquece. Nessa época as plantas se renovam, os insetos se proliferam, e assim todos os outros animais que deles vivem. As tempestades são mais fortes, o que ajuda a lavar as rochas e degradar as coisas. No pé dos morros, as florestas de encosta, como as que eu moro e por longuíssimas gerações meus parentes ocuparam, são aquelas que mais retém a neblina, a umidade e o solo um pouquinho melhor. 

A vida em lugares como esses é mais rara. Rocha, areia, mar e sal são combinações que nem toda planta consegue lidar. Para a vida de uma coruja buraqueira da restinga beira mar, em um ano, muita coisa acontece. Ressacas violentas, ventos alísios e marés podem acabar com o seu lar. Mas para a vida das florestas ou dos morros, é pouco tempo para o intemperismo fazer de um chão arenoso e cheio de calcário, sódio, alumínio e magnésio, virar um solo humoso, que as plantas se deleitem. É muita areia e muita argila para vingar tantas espécies. 

Os Guarani Mbya desde que chegaram aqui, há uns 5 mil anos, vindos de outros movimentos, sabiam que seria mais complicado trazer junto a floresta como já fez o seu povo em outros tempos. Não por uma coincidência, a ocupação humana na américa veio descendo da amazônia para o sul tal qual os rios voadores. Os Guarani, já ocuparam a Amazônia antigamente e, como um povo que caminha no seu modo de existir, veio descendo em milhares de anos juntos com os rios, replantando as florestas pelas bacias do Paraná até chegar no litoral. São povos que sabem o que é, como conviver e como reproduzir a mata atlântica. Mesmo com toda essa bagagem, eles dizem que a terra aqui não é boa para plantar. 

Por isso, vendo a restinga, os planaltos e as plantas da encosta se espalharem, não consigo deixar de sentir uma certa notar a capacidade da vida se instalar, se adaptar às condições. Isso meus parentes sempre me falaram, mas presenciar e fazer parte é diferente. E assim como percebo sou percebido. Há uma parte de mim que os outros vêem, que os outros tocam e acariciam. Eventualmente meu corpo também é transporte para outros corpos. Mas há também uma parte invisível para além da superfície aparente. Uma parte que processa informações e é responsável por redistribuir os comandos para o resto do que chamam corpo, embora, tal qual como solo e a mata, um corpo seja só uma palavra para denotar um coletivo reunido temporariamente.  

6. Mar

Marine tem as pálpebras levemente puxadas. É quase imperceptível. Contudo, não é apenas de íris que se faz um rosto. Quando visto em conjunto com a pele canela pálida e a íris jabuticaba, tem-se ali uma filha do mar. Caiçara consanguínea e, antes disso, a genética ameríndia acentuada. Apesar de uma infância conflituosa, na universidade inverteu os pólos do julgamento e passou a admirar suas origens. Sou caiçara, filha de caiçaras, neta de caiçaras de uma longa geração. Neste tempo, tudo passou a interessá-la ainda mais. Quando menina, passava pela rua do bairro da encosta e estas paisagens mimetizavam com a sua própria. Gilson tecendo a tarrafa na varanda, Hermelinda arando a terra no terreno íngreme e aberto, os homens de pele queimada e chinelos de dedo no bar do Afonso. Contudo, de tanto estar imersa naquela paisagem, Marine deixou de percebê-la e, na escola, a omitia. Não que lhe causasse constrangimento. Apenas por também se mimetizar com a escola e seus arroubos estranhos. As outras crianças e as outras pessoas eram elementos do território. Isso significava dizer que tinham um jeito especial de existir em relação com outras coisas e que só eram de fato algo em conjunto. Como são as árvores, as bactérias e todos os outros seres. Mas ela própria, por alguma razão, apesar de se ver dentro do filme, não sentia fazer parte dele. É como se, estranhamente, existe uma diferença entre as fronteiras do seu corpo e o que está fora dele.

Sua infância foi de itinerância entre mundos. As bibliotecas da escola e da pequena cidade litorânea eram as bilheterias de viagens pelo globo. Dos pequenos livros paradidáticos como Dom Quixote e Robinson Crusoé, passando pelas leituras obrigatórias escolares como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e Guimarães Rosa. Adorava olhar para um objeto de papel com mais de duzentas páginas, sem nenhuma ilustração – já que os gibis e as HQ eram apreciados por algumas pessoas da sua sala, menos por ela -, e saber que construiu dentro de algum lugar de si, imagens, histórias, sensações e aventuras. As brumas de Avalon, Harry Potter, Senhor dos Anéis, Percy Jackson e Guerra dos Tronos foram alguns dos livros que lera no ensino médio. Apesar disso, nunca se reconheceu com o que chamavam de Nerd. Ao contrário. De fala profícua, aguda e alegre, podia apresentar seminários, brigar com os meninos e soltar incontáveis palavrões em conversa com as amigas. A praia, a mata atlântica, as trilhas, os pássaros, os gambás do mato, as muitas plantas e os rios constituíam atores de suas aventuras imaginárias e aprendizados de família.

Apesar da baixa estatura, desde criança, já demonstrava que teria um corpo rijo e bonito. Os cabelos lisos, espessos e pretos brilhantes. A feição triangular de pômulos salientes e sorriso amplo com dentição simétrica e branca. Mais que isso, um sorriso fácil que não se constrangia em gargalhar quando à vontade. Os lábios grossos eram quase da mesma cor da pele, de modo que se notava seu relevo apenas de perto. Isso conferia um efeito míope em quase todas as pessoas que a conheciam. A princípio, uma estranheza causada pela forma da boca, afinal quase todo mundo tem a cor dos lábios diferente da cor da pele. Ora mais claros, ora mais escuros, mas frequentemente diferente. Porém, ao se aproximar, – tal qual quem coloca os óculos, – explodia uma beleza  com olhos de pólvora. Talvez por isso Marine teve poucos episódios de importunação na vida escolar. Mas também sentia que isso afastava um pouco as pessoas.

No colégio, o corpo florescido era notado, mas às vezes escondido com roupas discretas. Adorava jaquetas masculinas. A baixa estatura, o quadril largo e os seios muito maiores que o comum, traziam para si um desconforto vindo dos olhares dos meninos e uma monotonia de conversa por parte das meninas. Nossa, queria tanto ter esses seus peitos! Era uma frase comum para puxar conversa no banheiro feminino. Ela sentia atração física por alguns meninos e raras meninas. Mas, sempre que os ouvia falar era invadida por uma preguiça. Assim, como é comum nessa fase, trocava whataspp, recebia abordagens por meio de amigas, até chegava a beijar alguns meninos, mas nada que a fizesse prosseguir. Todos pareciam meio bobos e meio machistas. E os mais quietos ou nerds pareciam meio sem brilho, ainda que alguns fossem bonitos, por mergulharem em demasia em seus jogos, filmes e séries pareciam fazer amizade falando mal da cidade, das pessoas, dos caiçaras, e isso a desagradava bastante.

Quando provocada indevidamente pelos professores de seu colégio a pensar em uma profissão para seguir na vida, Marine respondia “letras” apenas para não deixar as pessoas sem resposta, apesar de achar inconveniente essa abordagem. E não te desagradava pensar nos livros, companhias tão prazerosas. Mas, na hora de fazer o vestibular, algum tipo de vento atravessou seu corpo e ela colocou Artes. Passou. 

Universidades públicas em cidades pequenas desempenham um papel muito diferente das suas matrizes em capitais. São um equipamento social que garante bolsas, alimentação barata, estadia e até algum status. Apesar disso, para a comunidade simples da região o trabalho em qualquer lugar era a primeira opção. Deste modo os vestibulares para estes lugares não são concorridos. A Marine-que-não-faz-parte-da-paisagem sempre enxergou que alguma universidade faria. Não queria plantar, nem pescar, nem costurar, nem trabalhar em alguma loja. Queria conhecer mais coisas. Já havia experimentado alguns mundos para saber que estas viagens eram importantes. Talvez por isso – as vezes ela se perguntava – que quis ir para as artes, em um universo que desconhecia. Ou – ela também considerava esta hipótese – por temer que a graduação de letras a fizesse perder o interesse pela leitura e transformasse as suas viagens em coisas muito mecânicas. Mas ao fundo ela não sabia.

6. Com quem você troca?

Os braços dela dançam no ar enquanto os olhos cintilam e os sons saem de sua boca. Você está sentado ao lado dela e é capturado pela história como raramente acontece. Ele me contou como foi a iniciação para que ele virasse xamã. Essas palavras alertaram seus sentidos. 

Entre os Kaingang, a iniciação envolve a troca de perspectiva do olhar. Não interessa com quem, pode ser com uma vespa, com uma cobra, um porco, tanto faz, e isso nunca se sabe. Mas o fato é que você passa a conseguir olhar com os olhos deste ser, no lugar dele e onde ele está, assim como o ser consegue olhar com os seus olhos Tudo isso gera gera uma grande apreensão ao indicado, inclusive se isso irá acontecer ou não. Pois o xamã, ou o pajé, são figuras muito importantes para esses povos, inclusive para sua sobrevivência. Então ele me contou o que aconteceu com ele. Você pinga algumas gotas de sangue na água do orvalho que escorreu na taquara, coloca em uma uma cuia, vai sozinho até o interior da mata, aos pés da araucária, deita sem roupa no chão e espera. O animal que se aproximar de você e beber a água da cuia, é o animal que você vai trocar perspectiva. 

Cada palavra provoca em você uma pulsação vibrante, apreensão e tensão. Você está trocando perspectiva com o xamã por meio das palavras dela. 

Estava um frio muito grande e ele foi até a araucária mais velha, sozinho, e deitou no chão. E quando você está nessa situação de espera, todos os seus sentidos estão no máximo estado de alerta. Você se funde com o próprio solo. Você ouve todos os barulhos e até o caminhar de um besouro. E ali, deitado, ele começou a ouvir lá de longe o barulho das folhas se mexendo no chão da floresta. Pelo som e pela velocidade era um animal grande. Ele paralisou e fixou os olhos para cima, no céu e na araucária. O barulho foi se aproximando devagar e estava muito perto dele. Foi quando, por cima do corpo dele, ele viu a onça saltar e até o bafo da sua respiração. O jaguar olhou pra ele e no mesmo momento, era ele olhando pra ele mesmo. 

 

Você estremece. Sempre teve muito medo e respeito pelas onças. Seres que fazem a sua vida parecer frágil no momento em que seus olhos se cruzam. Você sentiu o cheiro da onça e viu ela saltando sobre você mesmo deitado no chão com seu grande tórax e suas garras afiadíssimas. Foi preciso um tempo para que você saísse da floresta de araucárias em que foi jogado pela história. E, sem que desejasse, a imagem da encosta de guapuruvus lhe apareceu. O guapuruvu antecipou seu pensamento antes que a pergunta se desenhasse. Você se perguntaria: com quem eu posso trocar perspectiva?

 

6. Yvy Yvate

Dos tipos humanos, os Mbya são os que melhor conhecem esta região. Estão aqui há milhares de anos antes de chegarem as naus na baía. Para montar as tekoás (casas) determinadas pessoas que guiam o grupo identificam sinais, contidos nos mitos, como formações de rochas, palmeiras ou colibris, além de questões objetivas como um lugar com mata, água boa e terra possível de plantar o milho sagrado. Por isso, as encostas onde cresci e vivo, próximas a morros e lugares com elevação, de onde se pode ver o sol nascer no mar e plantar algo, são lugares especiais. Para os Mbya as florestas que nunca foram tocadas pelos homens são lugares sagrados. Assim como as matas virgens precisam ser conservadas. Por isso os Mbya fazem as suas casas e roçados nas matas baixas e capoeiras próximas à encosta ou nos planaltos.

Dos dois fins de mundo que a terra já passou, contam os mitos Mbya, um grande terremoto revirou a terra fazendo surgir as montanhas, morros e vales. Assim surgiu a serra do mar. Yvy Yvate é o nome dado aos morros e serras. Quando se compara esse mito com o que dizem os livros de geologia vejo muitas semelhanças com as rochas metamórficas. Por isso, não apenas pelo medo que denotam pelo mar, mas por se tratar de estruturas muito antigas da criação, os Mbya, quando chegam no litoral, formam morada. 

A serra é o que contém o mar e resguarda a mata. É o lugar de onde se pode avistar o mar. E, avistar o mar em seu horizonte estando em proteção é um modo de se prevenir contra qualquer ameaça que venha do mar. Além disso, os morros permitem observar sem ser observado, prever a chuva que se aproxima e, acima de tudo, é o local mais próximo do firmamento, o nascimento do Sol, o nhanderenondére – o destino final. Assim, o morro do escalvado é pontudo demais para receber uma aldeia, mas certamente por ele já transitaram ao longo dos milênios, muitos Guaranis para observar – de longe – o mar. Por isso, a combinação Mata atlântica e serra do mar é muito poderosa para o modo de vida Mbya, sua religião e sua ciência.  E, dizem, a ciência Mbya é um compilado das ciências dos animais, plantas, astros, rios e montanhas. Os seres do mundo são os pais da ciência. Das ciências.

7. O pai

Em 1995, em Itaquera, o pai de Andorinha conseguiu um lucrativo negócio de comprar livros usados em bazares e lixões para vender na avenida paulista. Não lia nenhum livro apesar disso. Claudio ganhou esse apelido no tempo do sindicato dos artistas na década de setenta. Era um homem preto de pele caramelo terra, óculos grandes e blusa de camurça. Bons colégios, faculdade de sociologia e direção de teatro. Nenhuma destas atividades ele concluiu na vida. E, tampouco foram suficientes para lhe despertar o interesse pela leitura. Seu apreço e aprendizagem foram pautados na prática, nas calçadas e nos murros em ponta de faca. Casou-se e teve filhos quase aos quarenta anos de idade, depois de uma vida boêmia muito agitada. Contudo, tal biografia lhe conferiu uma couraça que o fazia incapaz de pronunciar a palavra “desculpe”. Para ele, sempre, o tempo todo, as pessoas agiam para prejudicá-lo. Quando iniciou o negócio com livros, começou a ter dinheiro e a negociar mais, seu caráter e julgamento sobre os outros piorou. 

Para o jovem Andorinha, esta aventura livresca do pai-que-não-lia iniciou a sua própria carreira de leitor e, com muitas aspas, “escritor”. Redigia, ilustrava e editava pequenas histórias em livretos. Era o “talento” que descobrira ao qual uniu com uma notória falta de vergonha em ler seus escritos em voz alta, olhando nos olhos das meninas que admirava. E admirava muitas. 

O negócio do pai fez com que conseguisse dar entrada em um terreno próximo de Nazaré Paulista e erguer algumas paredes. A aventura de Andorinha na zona leste se encerrava e o episódio de diluição da família estava prestes a começar. Tão logo chegaram no novo colégio da pequena cidade do interior, os irmãos chamaram a atenção. O mais novo, Andorinha, pelo pequeno black power e pelos poemas que escrevia e declamava. O mais velho pela longa, lisa e preta cabeleira indígena, além das ideias e hábitos diferentes que trazia da capital. 

Do primeiro baseado de maconha para o resto, o irmão escalou rapidamente. Novo, Andorinha acompanhava seu irmão em todas as aventuras psicotrópicas e amizades com usuários e traficantes. Nem sempre usava o que os outros usavam, por vezes só acompanhava. Apesar de mais novo, dizia para irmão procurar prazer em outras coisas. Ler, escrever, fotografar, namorar, praticar algum esporte. Apesar disso, com ou sem o irmão, antes de completar 13 anos de idade, Andorinha já tinha experimentado todas as drogas disponíveis da sua época, menos heroína, porque não tinha. 

O problema do irmão, entretanto, era de adicção clínica e ordem psiquiátrica. Contudo, apenas a mãe tinha consciência disso. O pai e Andorinha viviam brigando com ele. Depois o marido com a esposa. O pai ficava cada tempo mais ausente, para sustentar a construção de uma casa grande e para comprar seus talheres de prata, lustres e sofás coloniais. A mãe, minguando a alma como mulher “do lar”, tirando na mão cada praga do jardim, e deixando tudo lustrado para a volta do marido. E, além de tudo isso, vendo seu filho mais velho entrar em um mundo sem volta. Não demorou muito para que uma grande briga ocorresse. Andorinha, que não estava envolvido, apenas afastou os homens ensanguentados em meio aos estertores da mãe. Separaram-se. O pai foi para São Paulo e os filhos ficaram com a mãe na casa inacabada. A mãe mergulhou em depressão, sem poder dar atenção para suas crias, que seguiam fazendo aquilo que queriam.

7. O que sustenta a água

O dente de leão é uma planta rasteira, que com sua folha partida verte leite branco, repleto de látex. Sua flor amarela e redonda se espalha na relva e, quando seca, forma uma esfera perfeita que ao soprar separam suas sementes. Presas pelo tricomas de penugens, elas se esvoaçam. 

O que você via naquele momento não era isso, mas o máximo que seu parco repertório imaginário consegue vislumbrar. Você está dentro da água e olha a divisa entre líquido e superfície a poucos passos de si. De dentro da água, ver todos os tricomas girando como uma engrenagem cônica ante a superfície submersa. A dança deles sustenta a divisa de mundos nos seus lugares. Giram e giram tocando a divisa de mundos. São grandes, ou você está muito pequeno. E por debaixo deles consegue ver as rodas que sustentam o giro. Te foi permitido mirar uma fração da realidade oculta das coisas. 

Dentes de leão são poderosos remédios para o fígado. Você não sabia disso, veio a descobrir depois, quando a nuvem diáfana da razão lhe impingiu a achar sentido nas conexões ocultas da mente. Talvez nem fosse dente de leão, era só a forma parecida, você mesmo contra argumenta. Falta muito à língua capacidade de tornar aquilo palpável para outra imaginação que não a sua. Deste modo, de precário em precário você segue crendo que a realidade é aquilo que se apresenta aos sentidos. Por isso você pensa que de fato visitou a intimidade do reino das águas e suas pequeníssimas estruturas que o sustentam.

 

7. Galáxias subterrâneas

Quero propor um exercício de imaginação. Um mergulho em uma fração muito pequena do que é a minha realidade, o meu mundo. Imagine que você está em uma floresta. A luz do sol entra por entre as brechas das folhas, mas quase nunca tocam a superfície da terra. Desça até o chão da floresta. Tire os calçados para pisar nela. Sinta o frio úmido da terra fresca no covado dos pés. Deixe que a transpiração das plantas penetre no seu pulmão carregando milhões de moléculas frescas para lá. Ajoelhe. Faça os dedos da sua mão afundarem no chão. Cave a terra. Encha a mão e olhe demoradamente para esse excerto de universo escuro e cheiroso que repousa na sua palma. Há, neste momento, aproximadamente 180 bilhões de seres vivos nesse punhado. Provavelmente existem nematódeos, anelídeos e insetos, mas são indivíduos muito grandes nesse universo na palma de sua mão. São mais de 6000 espécies e 10 bilhões de microrganismos por grama*. Essa camada do solo, próxima às raízes, chamada de rizosfera, é a mais rica em quantidade de seres. Cada ser com o seu saber, a sua ciência, a sua química se relacionando na galáxia de um punhado de solo.

Bactérias comendo e decompondo a matéria orgânica com ou sem a ajuda de oxigênio. Cada espécie com milhares, talvez milhões de indivíduos. São mais de 3 trilhões de bactérias, arqueas e actinomicetos suspensos na sua mão que, no chão, estabelecem íntima relação com as plantas.** São quase 1 milhão de protozoários, para comer vorazmente as bactérias e manter o equilíbrio do lugar. Nessa sua mão cheia de terra existem mais de seis milhões de fungos e microfungos sem os quais muitas plantas morreriam carentes de minerais que eles oferecem em troca de comida que a planta lhes dá nas raízes. Não só, esses fungos espalham-se pelo solo criando uma rede de comunicação que permite às plantas captar nutrientes muito mais distantes de suas raízes, como também saber de acontecimentos que se dão centenas de metros à sua frente. Um mesmo fungo com hifas de muitos metros de comprimento tecendo uma grande rede no chão da floresta. 

Continue o exercício de imaginação. Tente se colocar no meu lugar. Eu sou uma árvore. Tente sair do entorno do umbigo sapiens para encarar o mundo. Veja-se como uma árvore. Acima do solo, a relação cosmológica com o sol. Nos alimentamos tomando banho de luz. Abaixo do solo, no escuro, há uma teia de galáxias subterrâneas com seus seres todos. Eu converso com eles. Se quero mais nitrogênio, libero substâncias e as bactérias aumentam sua colônia e me trazem mais do que eu quero. Se quero mais fósforo, falo com os fungos. Eu falo com muitos seres, inclusive com humanos. Toda vez que um humano ou outro animal tem fome, ele está fazendo exatamente aquilo que uma planta deseja que ele faça. A planta produz o alimento e os animais fazem o trabalho cinético que ela quer. Muitas de nós produzem moléculas psicoativas capazes de criar dependência em muitas espécies, transformando-as em zumbis que agem como queremos. Os humanos são os mais fáceis de criar dependência por que se julgam livres. Mas há muitos humanos tremendo por um gole de café, um trago de cigarro, um doce, um chocolate, uma pimenta… todos manipulados neuroquímicamente. Nossa comunicação é muito mais objetiva e eficaz que outras. Ela é molecular e por meio disso conseguimos falar com outras árvores. 

Essa relação entre fungos e raízes, chamada micorrizas, faz com que nós possamos nos comunicar com outras plantas. Nós funcionamos assim. Se estamos em uma comunidade florestal, e alguma árvore companheira, de nossa espécie ou não, sofre algum ataque – por exemplo de insetos, fogo ou pragas – ela libera moléculas pelas raízes. Os fungos com suas estruturas gigantescas de fios, transportam essa informação química para outras plantas mais próximas que ficam sabendo do ataque a partir da molécula que a árvore atacada emitiu. Assim, nós conseguimos nos preparar para eventuais problemas, já fabricando mais substâncias que repelem o futuro ataque.  Até para pedir mais fungos nós comunicamos pelas raízes. 

Quando eu era jovem, houve um forte ciclone no litoral que derrubou muitas árvores na encosta. Com isso, nas chuvas, mais água descia para o pé do morro, onde eu vivo. A água forte faz levar boa parte dos nutrientes e dos microrganismos que eu preciso. Além disso, a água com muito mais minerais das rochas diluídos nelas, fez com que o solo ficasse ácido. É muito mais difícil para nós nos alimentarmos com chão ácido e pobre dos nutrientes. Eu, que não sou orgulhosa, pedi ajuda. Liberei os flavonoides e os fungos entenderam que eu estava carente precisando de ajuda para absorver nutrientes. Eles vieram prontamente, já que para mim, dar um pouco de açúcar para eles, não me custa muito. Sobrevivi bem e agora estou ótimo. Eles continuam lá, se relacionando no trânsito caótico de um punhado de solo. 

 

* Dinesh Chandra; Rashmi Srivastava; A.K. Sharma (2016). Environment friendly Phosphorus Biofertilizer as an Alternative to Chemical Fertilizers. Department of Biological Sciences, G.B. Pant University of Agriculture and Technology Pantnagar – 263 145, Uttarakhand, India

** Alexander, M. (1991). “Introduction to Soil Microbiology”, 2nd ed. Malabar, F.L, Krieger Publishing Company.

8. Lições

A primeira e última vez que o pai bateu em seu filho mais novo, a criança tinha por volta de doze anos de idade. Cláudio passou mais tempo fora de casa do que nela para ter condições de bater nos filhos. Mas também trazia consigo uma repulsa pela violência e, ao mesmo tempo, uma pulsão para ela. Rita, por sua vez, a quem coube o papel de presença diária, batia bastante nas crianças e frequentemente os colocava de castigo. Andorinha não completara sequer quatro anos de idade e tendo a mãe acamada e com febre inventou de jogar um fósforo aceso na lixeira que ficava em cima do botijão de gás. A chama foi crescendo enquanto a criança olhava para dentro dela absorto de sua beleza. Quando a chama estava alta o irmão alertou a mãe no quarto. Rita se lançou correndo do jeito que pôde e jogou o chá sobre a lixeira apagando o que poderia ser uma tragédia. Apenas depois da fumaça que a criança  voltou à realidade a tempo de perceber também os olhos de sua mãe ejetados de ira. Rita, possuída, pegou a vassoura e encurralou o filho no canto da parede, que a essa altura já vertia prantos. Desferiu golpes à olho cego. Costas, cabeça, pernas, quadril, não sobrou espaço livre para abrigar dores. Ao menos uma vez por ano, alguma situação muito crítica forçava a mãe a bater em seus filhos. Cinta, mão, vareta, chileno e tamanco de madeira foram outros instrumentos do arsenal de Rita. As sanções mais adotadas em comum acordo com o marido eram os castigos, privações e constrangimentos.

‒ Não tem dinheiro, vocês nem pensam em pedir algo pra comprar na rua ‒ alertava a mãe quando iam ao mercado. E, invariavelmente as crianças se esqueciam do combinado e pediam, ao que recebiam um beliscão ardido no ombro

Em Itaquera, uma vez um garoto grande pegou o pequeno “Fossa” – o primeiro apelido de Andorinha por ser uma criança o tempo inteiro suja de brincar – e o atirou em uma poça de lama. Ridicularizado e enlameado, Androrinha chegou em casa macambúzio sabendo que ainda seria ralhado pela mãe. Mas não foi isso que se sucedeu. Foi pior. Rita, que fazia o seu tricô, olhou por cima dos óculos e de pronto saltou do sofá.

‒ Que é isso! Você tá pingando lama no carpete! ‒  e saiu tirando Andorinha pelo braço até a cozinha.

‒ Foi o Mór! Ele me jogou na poça ‒  as palavras estavam preparadas mas saíram mais embargadas que o planejado. 

‒ Ah é? ‒  ela puxou o filho pelo braço, saindo de casa e indo até o lugar onde o moço estava com seus amigos. 

De longe, os meninos viram uma mulher baixinha rumando passo a passo arrastando um saco de lama humano pela mão.  A poucos metros o dedo em riste prenunciava, mas ao invés de falar algo com o garoto “Mór” o dedo dela virou-se para o filho. 

‒ Tira a roupa! – tensão no ar e todos os amigos paralisaram. 

‒ Mas… ‒  pego de surpresa, a criança que acabou de ser jogada na lama e achava que teria seu brio vingado pela própria mãe, estava prestes a piorá-lo. 

‒ TIRA A ROUPA AGORA!

Sem alternativa e devorado pela vergonha, Andorinha se despiu na frente de todos os conhecidos do prédio que abriram sorrisos laterais. Ela pegou o pacote de roupa enlameada, colocou na mão do agressor e disse: 

‒ Amanhã eu quero isso lavado, passado e sem nenhuma mancha, ouviu bem?

Ele também tinha medo e não falou nada. Teve que aguentar a zoeira dos amigos, mas nada comparado ao que a criança teve que passar. A preocupação da sua mãe, como ficou muito nítido, era maior com a roupa, que foi devidamente entregue e passada. E sem manchas. 

Mas o pai não. Sequer tentado bater ou constranger ele tentava, embora tivesse participação na articulação dos castigos. Defendia para a esposa que o mais desejado pelas crianças deveria ser o alvo da privação do castigo, além da privação de liberdade em casa. Sem sair para brincar. O mais perto disso ocorreu quando a dupla de irmãos decidiu fazer pães de queijo na ausência dos pais e, ao lerem a receita, acharam que 1 ⁄ 2 escrito na caligrafia da mãe, quisesse dizer 1+2 e colocaram 3 xícaras de óleo na massa. Nunca tinham visto aquela grafia na mesma linha. Sabiam que um sobre dois era meio, mas ½ na mesma linha tiveram que debater. E o mais novo, por razões escolares, deixou a última palavra para o mais velho. O pão de queijo virou uma pasta marrom com óleo gotejante. 

‒ Tem gosto de frigideira ‒  disse o irmão depois de provar aquilo cuja a aparência não recomendava teste. 

Resolveram abandonar a missão sem saber que o pai chegaria mais cedo em casa. Quando Claudio chegou, de tarde ainda, se deparou com uma cena apavorante de farinha, louça, pia, fogão e panelas sujos e fora do lugar. Uma assadeira com uma gosma em cima da pia. Não teve dúvidas. Saiu de casa e foi à captura de seus filhos os encontrando na quadra. As crianças quando viram o pai apontando no bloco se entreolharam e souberam, pelo jeito que ele andava, que haveria problema. 

‒ Vem aqui vocês dois ‒  e foram ambos cabisbaixos sendo puxados pela orelha até a casa onde foram obrigados a limpar tudo.

Foi o máximo de agressão que o pai cometera contra seus filhos até um dia em que trouxe o mais novo para acompanhá-lo no trabalho na barraca de livros da Av paulista. Um rapaz passou vestido com as roupas coloridas. Sem que esperasse, ouviu o seu filho falar:

‒ Olha esse cara, que baiano. 

Andorinha não tinha sequer doze anos e passou um tempo ouvindo isso dos seus amigos. Parecia algo normal de se dizer. Antes que o riso se completasse no seu rosto, o pai já estava na sua frente com o dedo no seu nariz e os olhos injetados por cima dos óculos. 

‒ Você nunca mais fala isso! ‒ o tapa veio em cheio no rosto e nos ouvidos. 

Andorinha caiu no chão sem audição no ouvido atingido e em prantos. Apesar da baixa estatura, o pai carregava muitas caixas de livro e tinha os braços duros como pedra. E, como nunca dera um tapa na cara de uma criança, não soube dosar a força.  

Essa foi a última vez que Andorinha apanhou de qualquer um dos seus genitores. Dois anos depois, já em Nazaré, quando Rita tentou bater no filho mais novo, este a segurou pelos braços e – com uma força que ela desconhecia – atirou longe a mãe no sofá. Rita caiu assustada.

  • Vocês tá me batendo?

  • Nunca mais você vai me bater!

Pouco tempo depois, Andorinha saiu de casa. 

8. Sol

Antes do dilúvio, no tempo em que animais e pessoas conversavam, Nhanderu deu alma a um homem e a uma mulher que conceberam uma criança. E então Nhanderu deu alma a ela também. Era Kuaray: o sol que morava ainda no ventre da mãe.  O pai da criança precisou caminhar e disse à mulher que caso ela o quisesse encontrar deveria seguir os desejos da criança. O pai seguiu o caminho reto e estreito. A mãe, depois tomou o caminho e em cada encruzilhada ela perguntava para o filho no ventre qual estrada tomar e Kuaray sempre lhe indicava o caminho. A criança gostava das flores bonitas e a mãe seguia. Quando estava colhendo uma flor amarela que Kuaray pediu, uma mangava ferroou a mãe. De reflexo, pela dor, a mãe chacoalhou a mão que bateu na barriga. Ela seguiu caminho, mas na próxima encruzilhada, a criança não falou nada. A mãe então não sabia qual caminho tomar. E acabou parando na casa de uma velha onça que alertou a mãe sobre os perigos que seus filhos poderiam representar para ela. Se os filhos da onça a vissem, certamente o comeriam, mas a velha onça se dispôs a esconder a mãe embaixo de um caldeirão de barro. 

Nesse tempo as almas das pessoas fracas não conseguiam chegar no corpo e assim iam parar no corpo de animais. Quando os filhos voltaram do mato sentiram o cheiro, perguntaram à velha onça, que dissimulou. Mas o mais velho – e o mais forte de todos – revirando a casa para encontrar, chutou sem querer o caldeirão e, encontrando a mãe, a matou. A velha onça pediu que, diante da morte, as onças poupassem o feto. Assim aconteceu. Ela ascendeu o fogo e foi deixando tudo em cima do fogo. Comeu a placenta e o que mais tinha para comer e só deixou a criança salva em cima do fogo para secar. Foi aí que Kuaray, o sol, ganhou o fogo para si. 

E a criança cresceu com as onças e aprendeu a caçar e pescar com elas. Sempre trazia muitos pássaros para a casa das onças. A velha onça passou tempos avisando para Kuaray não ir para os lados direitos da estrada, pois sabia que ali havia um papagaio que sabia de toda a história e sabia falar a língua de gente. Mas um dia, caçando, Kuaray se esqueceu disso e acabou indo a Nhandekeré e encontrando ao acaso o papagaio. Esse perguntou: “mas porque você leva tanto passarinho para a onça sendo que ela matou sua mãe?”. Foi aí que Kuaray descobriu a verdade. Voltou para casa sem passarinho algum. A velha onça achou estranho a falta dos pássaros para comer e questionou Kuaray. Este inventou a desculpa do enxame de marimbondos. Por isso seus olhos estariam vermelhos. Depois Kuaray decidiu encontrar os ossos da mãe morta. Achando-os foi ao mato e deles, com seu fogo, criou o seu próprio irmão, Jaxy: o Lua.

Kuaray tentou recriar a mãe também, mas não conseguiu. Com raiva decidiu se vingar das onças. Organizou com Jaxy um plano para atrair as onças para uma ponte comprida e cortar a corda. Com a ponte pronta atraíram as onças dizendo que havia uma caça de anta. Quando as onças estavam atravessando a ponte, Jaxy achou que tinha recebido o sinal de seu irmão e cortou a corda antes da hora. A última onça, grávida, conseguiu escapar e é ela que vai garantir que as onças existam ainda hoje. Mas agora os irmãos estavam separados pelo rio. Em margens diferentes. Depois disso, seguiram e encontraram um pescador na beira do rio. Para enganar o pescador, Jaxy mergulhou na água e puxou o anzol como se fosse peixe. Por isso, Jaxy, o Lua, é o pai da pesca e sempre que a lua está presente, cheia, a pesca é mais abundante. 

Mas assim que sentiu o pescador puxou para fora e acabou pescando Jaxy. Apesar dos protestos de Kuaray para não comer o peixe pescado – seu irmão – o pescador comeu. Kuaray pediu para deixar os ossos. Assim fez o pescador. E Kuaray conseguiu refazer o seu irmão a partir dos ossos dele mesmo. Dali seguiram juntos em direção ao sol poente passando pelo meio do mundo (yvy mbyte). Por isso que o sol ao meio dia para um pouco de andar, para descansar. 

Nesse descanso, Kuaray desafiou o irmão a jogar uma flecha o mais alto possível no céu. Jaxy aceitou. A flecha que Kuaray jogou alcançou o céu. Já a flecha que Jaxy jogou só alcançou as nuvens. Assim, o Sol alcança o lugar mais alto do que a Lua. Kuaray passou a morar no lugar mais alto e Jaxy no lugar mais baixo do céu. E Kuaray decidiu que, com seu fogo, iluminaria o mundo e os filhos da terra. Kuaray nunca tem preguiça e todos os dias ilumina o mundo. Já o Lua, Jaxy, clareia algumas noites, mas depois desaparece. 

8. Beijar as flores e os astros

O Sol  e a Lua nascem para todos os seres. As estrelas e os planetas pontuam a noite em um retrato muito mais antigo que a Terra. Nem mesmo um morro do escalvado pode se regozijar de mais velho, diante do mundo lá fora do planeta. Para os Mbya, existe uma estrela no céu para cada ser vivo na Terra. Kuaray, o Sol é também “o Pai”.  O céu é o espaço pelo qual se emolduram estas trajetórias e a partir da relação de todos estes seres cósmicos se pode prever as coisas organizar os ciclos. Ara é a palavra Guarani para “céu”, mas também pode denotar algumas espécies de aves, como a Arara. Não é incomum que o meio e o ser tenham o mesmo nome em algumas ocasiões e espécies. É como se o nome fosse dado à cena, ao processo e não às coisas em particular. 

Na astronomia Mbya existem duas fases do ano. Ara Pyau, o tempo novo é trazido pelo colibri, tempo das flores e do renascimento da floresta com o calor do sol. Não existe equivalência de datas no calendário de meses, mas aproxima-se do que se conhece como primavera e verão. Ara Pyau não está presa nos dias, ela acontece quando os sinais dos seres aparecem tal qual as flores nas matas, na mudança da cor das folhas na paisagem da floresta, dos novos cantos dos pássaros, dos ventos quentes, das chuvas fortes.  É o recomeço da transformação. Toda a energia solar e os nutrientes da chuva se combinam informando às plantas a disponibilidade de florirem. Por sua vez, as plantas convocam seus seres aliados para espalhar para se reproduzir. Comidas, frutos, animais … tudo começa a revirar.

A outra parte do ano é Ara Yma, o ano velho. É o tempo do frio, tempo onde as constelações aparecem mais e senta-se em volta da fogueira para contar histórias através das estrelas. A via-láctea é o caminho da anta. Foi por meio dele que os animais vieram à Terra. A constelação do Veado guarda os campos, a constelação da ema indica a região Karai (sul). O bico da ema olha para lá e sua crina é o que em outros lugares chamam de cruzeiro do sul. E todas as constelações são guardadas pela constelação do ancião (tudjai). 

Os indícios de que a virada de do Ara yma para o Ara Pyau são o alinhamento entre o caminho da onça e o por do sol (em Tupã) assim como os beija-flores. O colibri foi umas primeiras criações de Nhanderu. Responsável por florescer o mundo. É a própria essência da primavera. O dia do colibri é o tempo e o espaço da mudança de estações. Ele é um polinizador e assim como as abelhas, muitas vezes recebem o mesmo nome que a flor. A coisa que ganha nome, no caso é a relação, o processo, assim como o céu e a ave. 

9. O jardim dos estratagemas

Por qual razão as crianças mandadas para a diretoria para tomar uma advertência, confessam o que fizeram? A professora não está lá, a inspetora também não. A temida porta da diretoria abre, a criança entra e recebe a pergunta: por que você está aqui? E então ela, espontaneamente, confessa. Para Andorinha, a razão para isso estava enterrada nos confins metafísicos do senso de justiça até a 8ª série. Após isso, a verdade ficou fluida; a realidade, construída; as intenções, senhoras dos sentidos; e a ficção, muito mais poderosa que os fatos. 

O jovem Andorinha acabara de perder direito ao intervalo escolar por dois meses. A razão desta injustiça teria sido o fato de ele rir de uma professora. Rir muito, mas nada além disso. Quando a substituta de inglês entrou na sala, Vanessa, que sentava na frente da mesa maior perguntou:

‒ Nossa professora, quantos anos você tem? 

A docente, um pouco sem graça, sorriu, mas assentiu a resposta. 

‒ Tenho 19 anos, mas já estou terminando a faculdade. 

Lúcia, uma amiga de corpo cheio, fumante e roqueira, que estava até então compenetrada em seu caderno, falou em voz alta, serena e sem levantar os olhos. 

‒ Dezenove anos! Só se for em cada perna. 

A sala toda riu. Mas Andorinha, pego de surpresa pelo modo altivo e petulante de Lucia, gargalhava alto. Chegou a rolar no chão entre lágrimas de riso e escárnio. E, como o efeito contagiante do bocejo, as gargalhadas de Andorinha faziam mais pessoas gargalharem e um processo que durou minutos a fim. Para a jovem professora, entretanto, foram longos e constrangidos minutos. Suas lágrimas não eram de riso. Fez chamar a inspetora e relatou o que aconteceu, retirando Lucia e Andorinha para a diretoria. Quando a inspetora reportou o ocorrido à coordenadora, todas pessoas ficaram em choque com tamanha falta de respeito. E as duas crianças perderam o direito à intervalo por dois meses. Convocaram uma psicóloga para conversar com elas em algumas seções. Psicóloga essa que na primeira seção – ou papo existencial -, saiu admirada com a articulação da criança e seu pensamento, descartando qualquer possível problema. Ao fim, apesar de ser caçoado pelos colegas, o período de detenção pareceu um grande privilégio dado que a inspetora Nadir sempre te trazia a merenda sem que ele precisasse pegar a fila. 

Andorinha acostumara-se a ter apelidos e sofrer bullying na escola. Todas as questões relacionadas com sua aparência e estatura eram devidamente exploradas pelos colegas, que, entretanto, tinham na vítima sorrisos e autobullying. Foi a estratégia que encontrou para não tornar o exercício do bullying aprazível aos outros. Um outro colega de sala, Will, que tinha micoses e psoríase na pele, recebeu o apelido de “caborje”, um tipo de peixe escamoso. Imediatamente partiu para cima do rapaz que o insultou, desencadeando uma briga sangrenta. O resultado foi que o apelido se espalhou e ele se via obrigado a brigar sempre. Andorinha já havia sido educado pela sua mãe a aceitar a realidade dos fatos, de que era uma criança feia, magra, baixa, pobre, mas consciente, confiante e inteligente. Assim, desenvolveu a capacidade de zoar a si mesmo mais que os seus agressores. Estancando assim as tentativas. Mas, para além disso, Andorinha, pelo seu vocabulário muito mais amplo de uma vida prematura de leitor, conseguia refinar a perversão do bullying que praticava contras seus colegas. Era especialmente habilidoso para encontrar as fragilidades mais escondidas das pessoas de sua idade e explorá-la do modo que bem entendesse. Às vezes para arrancar lágrimas de humilhação de seus algozes e suas vítimas. Mas , talvez por essa habilidade, era muitas vezes convocado por pessoas como um aconselhador.

Por expressar de maneira diferente os seus pensamentos, não raro se via em conversas que pessoas até mais velhas lhe pediam opiniões sobre seus conflitos ou saídas para problemas ou formas de conquistar uma garota. Foi neste período da vida que Andorinha exerceu a função de gost writer e trocava cartas de amor por benefícios na cantina ou dinheiro. Ele sentava-se com a pessoa que estava apaixonada e desejando conquistar uma garota, perguntava como se conheceram, as situações que guardava na memória, acontecimentos, gostos, como era a pessoa desejada etc. Então, articulava um soneto ou alguma carta em que isso ficasse evidente. Tentava emular o vocabulário que a pessoa usava – para não parecer tão inverossímil, e sempre alertava ao entregar. 

‒ Você precisa falar isso, não entregar escrito. A escrita depende muito de quem lê, mas a fala vem de você. Decora, olha no olho dela e fala. Precisa ter coragem, mas você consegue… é a paixão meu amigo. 

O exercício de alteridade passou a ser uma estratégia muito proveitosa para a vida. Colocava-se no lugar dos professores, da diretora, ao fazer isso vislumbrava a vida que levavam imaginando e construindo um quebra cabeça um pouco ficcional um pouco factual. Até que, no final daquele ano, ao ser levado para a diretoria novamente, decidiu improvisar. A professora de educação artística, incomodada com a conversa intermitente, tirou Andorinha e Lúcia para fora da sala.  Como, contudo, não chamou nenhuma inspetora para reportar o caso, apenas ele e ela sabiam a razão de estarem na diretoria. A porta abriu e era a própria diretora que estava lá. Quase sempre era a vice-diretora ou a coordenadora pedagógica que faziam aquele turno de trabalho. 

‒ Por que vocês estão aqui? ‒ foi perguntando enquanto fechava a porta atrás deles. 

Com calma, olhando nos olhos da diretora e sem saber muito bem como iria terminar o que estava prestes a começar, Andorinha iniciou um monólogo. 

‒ Maria José, tudo bem? Bom dia. Eu sou Eduardo e essa é a Lúcia, do 8ºC. A gente pediu autorização da professora de artes para falar uma coisa com você ‒  Lúcia estava quieta com as mãos dentro das pernas e olhando pra baixo, mas havia um sorriso naqueles lábios ‒  Outro dia a gente estava ali perto do portão e a gente se questionou que muita gente estava sentada no chão tomando sol com o prato da merenda no colo. Aí a gente reparou que em volta da escola toda tem árvores grandes, mas dentro da escola é só concreto. Tem o morro ali perto da quadra que tá seco. A gente é de uma escola, sempre ouve falar de meio ambiente, mas a própria escola não planta uma árvore sequer. Não é estranho? Então a gente queria saber se a gente não consegue fazer algo pra mudar esse ambiente.. ter mais plantas, mais verde, mais sombra.

Os olhos da diretora se abriram com a sobrancelha levantada. 

‒ Nunca vi um menino da sua idade usar a palavra ‘questionar’! ‒  abriu um sorriso ‒  Mas eu gostei muito da ideia! 

Então Lúcia, que rapidamente entendeu o rumo da prosa, porque de fato havia  tido essa conversa com o amigo, já encaminhou tudo.

‒ A gente podia falar com o pessoal da região para doar mudas, ou fazer um estudo dos tipo de plantas. Ou os desenhos de um projeto. A gente pode escrever o nome da escola com pingo d’ouro no morro aqui da quadra.

Pelos próximos minutos, em uma reunião de trabalho, as três pessoas discutiram a implementação da ideia. A diretora endossou e aquilo se tornou um projeto interdisciplinar em que todas as matérias de todas as séries precisariam aderir relacionando suas matérias ao “projeto jardinagem”. Desenhos, biologia, plantas, cálculos, cartas de apresentação. Mudas foram doadas, terra com húmus, manilhas de concreto como vasos, madeira e mão de obra para construir um pergolado. Oito meses depois daquela conversa a escola estava mudada de mudas. E era preciso tomar cuidado para mandar Andorinha para a direção. 

9. Krenak

Você não deve saber disso, mas teve um tempo, nos anos 70, que eles chamavam de fazenda. Eram prisões para os indígenas. Era uma estratégia deles, juntar um monte de indígena diferentes em um lugar para ver se eles se matavam. A fazenda Guarani, lá em Minas Gerais, foi uma dessas e meu pai fugiu de lá. Mas os povos não brigavam. O que acontecia era o contrário, se uniam para arquitetar uma fuga. Até hoje tem as histórias da cadeia lá, um reformatório indígena dentro da cadeia onde vários indígenas do Brasil eram levados pra lá pra cumprir pena por beber um copo de cachaça. Meu pai mesmo ficou quatro meses preso. E ele dizia assim. Que na prisão ele cozinhava, mas os militares colocavam o índio novo pendurado, por esporte, e fazia o outro índio surrar o outro que estava pendurado lá. E se falasse não ele ia ser morto. Ele viu filho obrigado a espancar o pai para não ser morto. Os Krenak quase acabaram. Nós éramos mais de cinco mil Krenak em 1700. Aí vieram as doenças, a “guerra justa” – que de justa não tinha nada – e depois a ditadura. Sobraram 42 pessoas. E dessas 42 pessoas ainda a FUNAI, junto com o Capitão Pinheiro, pegaram essas famílias e dividiram elas dentro do Brasil. Que era pra acabar, pra eliminar a cultura. Por quê? O território dos Krenak era muito rico em minério, pedras preciosas.  Então, para você ver, aqui a gente foi invadido, a gente foi explorado, nossas riquezas naturais até hoje são vendidas para países estrangeiros. O indígena sem-terra, não pode reclamar do seu recurso natural e muita gente chega e diz: “Vocês são os verdadeiros donos da terra” Como? Se você é dono de uma coisa, e você não pode reclamar, você não pode falar, entendeu? Porque quem manda é o poder econômico. São várias questões, que precisam ser articuladas e a gente precisa mostrar isso para as nossas crianças que não cresçam cidadãos incoerentes. A minha maior vontade, até o dia que eu falecer é que essas crianças brasileiras, elas conheçam a verdadeira história do Brasil. Chega de Pedro Alvares Cabral, chegou, descobriu o Brasil, ai que bonitinho, tinha índio aqui, olha que legal! A ele descobriu o Brasil, só que o Brasil ele era todo reflorestado, ele tinha várias riquezas, inclusive tinha milhares de povos aqui. E é difícil pra você, um não indígena entender muitas coisas. As vezes vem antropólogos aqui na aldeia. Ficam com a gente, convivem, depois você vai ver o que ele escreveu e não tem sentido. Por exemplo, se por sorte, alguém consegue capturar uma presa grande e traz para aldeia. Nesse mesmo momento a gente prepara uma festa. Mas o que eles não entendem é que a festa não é para comemorar a morte do animal ou algum outro motivo, ritual, que eles gostam de achar. Ao contrário, a festa é para todos comerem, porque o caçador não vai comer sozinho a caça. Todos são chamados para comer tudo e não deixar estragar. Deixar uma comida estragar sim seria um desrespeito com o animal. Os antropólogos brancos acham que as coisas são e não mudam. Mas tudo muda. Não existe um “O Krenak é assim!”. Por exemplo, se você está nervoso, você está estressado e você tem o direito de estar nervoso, de estar estressado. E aquilo pro homem branco é interpretado ao longo da sua vida. Fulano é nervoso, é genioso. O indígena é assim, sabe que tudo muda. Se o cacique chegasse na aldeia bravo porque a caça não tinha dado certo, porque aquele dia não era um dia bom, ou tinha perdido um membro da tribo e chegasse na aldeia bravo iam dizer, o cacique é carrasco, o cacique é mandão. Não, ele ficou assim por conta das coisas ruim que aconteceram. Mas ele não É assim. Mas é difícil de explicar. Como dizia a minha vó do jeitinho dela ela dizia assim: “ah, o homem branco ia na aldeia, tava frio e de repente o Sol saia e tava quente esquentando a casa. Aí a gente resolvia juntar todo mundo naquele dia e cantava, dançava pro Sol agradecendo a deus” e o homem branco via aquilo e dizia, “eles estão adorando o deus Sol” então, eles davam deuses para nós. Mas a gente só tava agradecendo a um deus só pelo Sol que estava aquecendo e nós não íamos mais ficar com frio. É uma interpretação branca e até hoje o homem branco entra em algumas aldeias e interpreta de má fé ou errado aquilo que é passado, ou as vezes nem é passado pra ele e ele só vê e acha que é daquele jeito que funciona todo dia. Eles acham que se a gente usar roupa ou celular ou assistir TV, a gente deixa de ser indígena. Não. Você pode fazer uma faculdade, casar com um não indígena, ter filhos, morar dentro ou fora da aldeia, nem por isso você vai deixar de ser indígena. O índio não está no cocar, não está na pintura, não está no andar nu, o índio está no seu sangue.  Ah, mas como seria se o Brasil fosse governado por indígenas? Com certeza o Brasil iria ter sua economia, mas as coisas iam ser feitas com cuidado. Sem avareza. Os ganhos e os lucros seriam aferidos com mais cuidado. Não precisa acumular. Mas não, o homem branco quanto mais tem, mais quer. 

E às vezes me perguntam: “mas o que eu posso fazer pra mudar, pra ajudar, pra levar esses conhecimentos pro meu povo não indígena. Eu sempre respondo que é pra fazer como uma criança. Faz igual um bebê. Quando ele vai começar a andar, o primeiro passinho dele é aquela expectativa, parece que ele vai cair e rachar a cara, agora quando ele dá o primeiro passo, segundo, que ele tem confiança e dá o terceiro e ele vai começar a andar, ele vai cair, ele vai levar o tombo, mas ele vai, levantar de novo e vai ainda fazendo graça, bebezinho é assim. Então, o primeiro passo você já deu, o segundo…Você está começando, segundo você vai olhar para trás e vai falar assim: “Meu deus, é só colocar as ideias para funcionar”. Nada melhor para você, do que sentar com jovens, não precisa ser em aula: Vamos  articular isso aqui? Ou como vocês querem que isso funcione? A gente faz isso com os nossos aqui. A gente vê que as coisas estão muito cansativas, aqui, ali… peraí. Como vocês gostariam que fossem, fala para a gente? Não, eu achei que fosse mais dinâmica, mas prático. Ai a gente começa essas questões, mas primeiro a gente repertoria, depois saia a campo, a gente não sai assim…ô molecada, vamos ali (risos). É isso que a gente faz, mas quando você vê, você está longe, seu projeto está longe, você vai longe, você fala: Meu Deus, eu estava achando que era uma coisa tão pequenina e olha onde que está! Entendeu? Quando você menos espera, você começa a ver o retorno.

9. As galáxias dentro das galáxias

Não sou bom com analogias, mas um jeito de imaginar a importância das moléculas para uma planta é imaginar um mundo humano em que a unidade básica de alimento é a palavra. Nesse mundo, comer palavras e trocar palavras é ao mesmo tempo sobreviver e se comunicar. Ainda assim essa analogia é precária, pois comer palavras exige uma literalidade. As palavras não existem, o que existe é a fibra de planta do papel na qual ela está impressa. Um boi ou um cavalo podem literalmente comer as palavras de uma bíblia pois são capazes de digerir a celulose. Mas o signo das palavras são apenas convenções. Nesse mundo alegórico as palavras precisam ter materialidade. Serem feitas de várias coisas e misturas. Cada mistura recebida, buscada, trocada ou fabricada possui uma série de significados. Para alguns, fazer um bolo de laranja que os netos amam pode ser o significado da palavra amor. E quem deglute e mastiga o amor o sabe estar fazendo isso pelos sentidos, não pela semântica. Por isso a comunicação – mas também os conhecimentos e a ciência – dos vegetais é muito mais direta e efetiva do que a dos humanos, repleta de ruídos.

Fungos, bactérias, arqueas e plantas falam a língua dos tijolos da tabela periódica. Mais afundo destes seres, do que comem, sintetizam e do que expelem existe um outro mundo menor ainda. Galáxias que fazem parecer um punhado de terra nas mãos de um humano o mais gigantesco dos universos. O mundo dos átomos, tijolos de toda construção molecular e símbolo da relação cosmogônica que temos – todos os seres  – com as estrelas, sua luz e os elementos que ela produz. Sem estes elementos essenciais nenhuma planta sobrevive. Hidrogênio, carbono e oxigênio estão na base do DNA que sustenta as formas de vida. Qualquer ser é feito disso e, portanto, precisa conseguir isso se alimentando ao longo da vida. Mas especialmente para as plantas, o nitrogênio, o fósforo, o potássio, o cálcio, o magnésio e o enxofre também são indispensáveis.

O nitrogênio é o mais abundante elemento da atmosfera. Faz parte das moléculas de energia, da clorofila, das proteínas e das enzimas. É o principal alimento nosso. Com carência de nitrogênio nenhuma planta cresce. Boa parte do que consumimos de nitrogênio vem do solo com ajuda das bactérias que, ao comerem liberam nitratos e amônia.  O fosfato é essencial para nós produzirmos alimento em forma de açúcares como glicose e frutose. O potássio está intimamente ligado com a nossa capacidade de beber água. Uma planta que consegue acumular mais potássio, retém mais água e consegue sobreviver à secas e geadas. Eu não sou dessas plantas. Mais de duas geadas em um ano e eu já terei morrido. Por isso minha família se espalhou pelo litoral do sudeste brasileiro. Não nos encontrarão no nordeste, tampouco no extremo sul. Principalmente nas encostas, livre de alagamentos e correntezas, de frente para o sol da manhã. O cálcio, dos ossos humanos, também nos é essencial para produção das nossas paredes celulares e na comunicação entre as células quando uma planta precisa enfrentar algum problema. O magnésio é importante para respirarmos, pois ele que passa a informação das enzimas para as as nossas bocas de soprar gases – os estômatos. E o enxofre é importante para compor algumas proteínas e aminoácidos do nosso corpo. 

Além destes tijolos elementais da nossa vida, há outros elementos nesse mundo cósmico do solo. Elementos esses que podem nos ajudar eventualmente, e também para os quais algumas espécies sequer sentem falta. O boro, o cloro, o cobre, o molibdênio, o zinco, o ferro e o sódio. O boro ajuda na relação com os hormônios e a modificar a forma das células, coisas que podem ser muito úteis dependendo do lugar que você viva. O cloro pode ser utilizado na fotossíntese para interagir com o gás oxigênio. O cobre, assim como o ferro ajudam no processo de oxidação para que as plantas possam respirar. São excelentes condutores de elétrons também na cadeia da fotossíntese. O molibdênio pode ser requisitado nas transformações de moléculas de nitrato e na captação do nitrogênio do ar. O zinco pode ser requerido para produção de algumas enzimas na clorofila. E o sódio, presente no sal do mar, mas também no solo, auxilia na fixação do carbono. Ele pode estimular o crescimento das plantas. É como um abridor de apetite. É tempero para humanos e para nós também. Particularmente para minha espécie o sódio é mais requisitado. Aprendemos a lidar com ele no processo evolutivo. Eu e as iguais a mim crescem muito rápido e têm uma madeira bastante leve por conta disso. 

10. Luta de Classes

O projeto jardinagem alçou Andorinha à uma posição de prestígio e privilégio de negociação com professores, direção e colegas. O representante de sala e radialista da escola exercia papel de mediador de conflitos e reivindicações com a direção. Até a secretaria de educação mandou todas as escolas liberarem os alunos ao 12:20 e não mais às 11:50 como sempre. A direção não quis discutir. Disse que era uma decisão superior, tinha que ser cumprida e pronto. Mas havia insatisfação dos estudantes e dos professores. Estes últimos permitiram que Andorinha e outros colegas de outras turmas passassem de sala em sala para organizar uma resistência. O combinado era que, como se nada houvesse, às 11:50 os estudantes saíssem em conjunto das salas, sem gritaria, organizadamente em sinal de protesto. 

No primeiro dia, sem alarde, um estudante tocou o sinal da escola às 11:50, outro apertou o botão que abre o portão, outro grande e forte ficou no portão para que não tentassem fechar e todos saíram pacificamente. No segundo dia, as salas com os botões do alarme e do portão estavam trancadas. Matheus, da 8ªA conseguiu no intervalo pegar o molho de chave do outro portão e as 11:50 todos saíram mais uma vez. 

Na tarde do segundo dia, em um escritório de advocacia, Andorinha e Mayra estavam sentadas para conversar com um advogado. O senhor Waldomiro. Mayra, uma moça ruiva, alta e com sardas ferrugem, comprou essa briga sem saber muito bem porque, assim como o garoto que estava ao seu lado na sala de espera do escritório do senhor Waldomiro. 

‒ Nossa, o que que a gente tá fazendo aqui? Por que compramos essa briga? – perguntou o menino à amiga. Ela sorriu.

‒ Sabe que eu estava pensando a mesma coisa. A gente tem um monte de coisa pra fazer e inventamos isso. Mas vamos em frente.  

Waldomiro ouviu com atenção as argumentações efusivas sobre a diferença dos 30 minutos a mais de escola na vida de todas as pessoas envolvidas. Prometeu que consultaria as normas, etc. 

‒ Mas tem um porém ‒  disse o advogado baixando o tom de voz – eu vou ajudar vocês, mas tem uma coisa…

‒ O que? ‒ respondeu Mayra como se pressentisse pelo tom do homem o que viria a seguir. 

‒ Assim…. não sei se vocês sabem… a gente precisa se ajudar… eu vou ser candidato a vereador logo logo.. e muita gente na escola já vota… então…

As duas crianças se olharam entendendo a situação embora não soubessem o que responder tamanho constrangimento pela audácia daquele senhor de extorquir crianças. Souberam naquele instante sobre o caráter do Dr. Waldomiro passando a difamá-lo para toda a escola, inclusive na rádio. 

No terceiro dia, passaram pelas salas avisando que uma buzina tocaria às 11:50 e que o processo continuaria. Às 11:50, com toda a educação Andorinha  levantou da sua cadeira na aula de portugês: 

‒ Com licença professora, preciso fazer uma coisa. ‒  e tocou a buzina de spray por todos os cantos. 

Mas neste dia havia uma força tarefa nos portões para que nenhum estudante tentasse sair. A ronda escolar também estava lá com os policiais fardados. Os estudantes ficaram no pátio. Ninguém na sala. Esse processo se repetiu por mais dois dias. Na sexta-feira, a direção muda de estratégia e decide marcar uma reunião para elucidar as razões pelas quais aquela ordem havia vindo. Andorinha estava lá com a comissão de rebelados. O argumento central era que a escola estava irregular com as normas que previam uma carga horária mínima de 200 dias letivos por ano. O que era um fato. E, para não estabelecer um calendário de reposição, optaram por expandir o horário dado que de 30 em 30 minutos diários, os dias letivos seriam repostos. 

Contudo, os rebelados tinham um contra-argumento que não invalidava todas as questões levantadas pela direção. 

‒ O fato de a escola estar irregular todos estes anos não invalidou tudo que aconteceu. Todo mundo passou de ano e avançou de série. Se, mesmo estando irregular isso foi possível, significa que é possível ainda permanecemos assim até mudar o ano. Aí, no ano que vem, vocês implementam o novo horário. 

Havia fatos também no argumento de Andorinha. Era possível permanecer assim porque já estavam assim. A direção sabia que podiam manter o horário, mas também sabia que havia pressão dos órgãos superiores. Percebendo esse impasse, Andorinha  sugeriu aquilo que os filme de sessão da tarde sugerem diante de uma negociação: 

‒ Olha, a gente sabe que dá pra manter do jeito que está, mas pra não ficar ruim pra vocês, a gente pode ver com os alunos se sair às 12:05. Assim a gente cede um pouco e vocês um pouco. Na metade. Ano que vem vocês já se organizam do jeito que precisam. 

A direção aceitou. No dia seguinte a comissão passou de sala em sala dizendo que tinham conseguido uma vitória e que a escola ceder foi fruto da bravura e organização dos estudantes. Perguntavam se estava tudo bem. Algumas pessoas ralhavam, mas em linhas gerais, a proposta foi aceita. A escola cumpriu com a negociação. Por quatro meses os horários das aulas ficaram um pouco desregulados, mas às 12:05 – todos estudantes tinham relógios muito bem calibrados – o sinal tocava e Andorinha conseguia chegar a tempo em casa para assistir Yuyu Hakusho. 

10. Piragui

Quando os Mbya chegaram no litoral, cada grupo se dividiu pelas ilhas. Um grupo ficou na Cotinga (Jakutinga), outros para a ilha do mel (Eiretã) e outros para Superagui (Piragui) – que não era uma ilha.  Para chegar em  yvy marãey (a terra da eternidade)-, o lugar sagrado dos Mbya é preciso atravessar o mar. Na travessia, uma mulher mais fraca não conseguiu passar pelas provas e sua alma foi sozinha ao encontro de Nhanderu e seu corpo foi capturado pelos peixes para que se tornasse a rainha deles. Seu nome passou a ser Piragui que significa sereia. 

Piragui transitava pelos rios e pelo mar e cuidava para que ninguém sujasse as suas águas para que os peixes tivessem sempre água limpa. Em busca de um acompanhante, Piragui abordou um homem pescando cuja mulher estava grávida. O homem não conseguia pescar e, de impaciência, acabou fazendo cocô nas águas. Piragui deu um tapa na bunda dele chamando a sua atenção. Ela fez uma proposta ao homem. Se quisesse peixes ela daria a ele desde que ele desse o filho para ela. Precisando dos peixes, o homem assentiu. Muitos peixes foram dados ao homem. Chegando em casa, ele disse à sua mulher, que de tantos peixes não pescaria mais naquele rio. Mas não falou nada sobre o ocorrido. Nunca mais o homem passou por lá. 

A criança cresceu e o homem se esqueceu do acordo, mas Piragui não. O filho um dia saiu para pescar e Piragui imediatamente o puxou e o levou para o fundo do mar. O pai e a mãe não sabiam dizer o que aconteceu para que o filho sumisse. Foi quando o pai se recordou e contou chorando à mulher o acordo que tinha feito com Piragui tempos atrás. Eles foram contar o caso para o pajé, que já sabia do acontecimento. Fizeram então uma casa de reza muito grande na beira do rio. E rezaram, cantaram e dançaram por três dias sem parar para que Nhanderu mandasse forças. No quarto dia Piragui apareceu no meio da casa de rezas com o rapaz preso junto ao seu corpo. Ele estava vivo. 

Ao entrar na casa de reza, Piragui começou a cantar, dançar em volta do fogo e foi perdendo as forças. Quando caiu no chão acabou soltando o rapaz. Quando voltou a si estava sozinha e foi embora mas jurou vingança. Até hoje ela pode aparecer a qualquer momento em qualquer ilha. É por isso que as rezas precisam ser feitas juntos na casa para afastar o mal das pessoas. E é por isso que não basta apenas chegar no mar para atravessá-lo. É preciso ter muito cuidado para não ser capturado por Piragui. 

10. Superagui

Superagui era um lugar de passagem e muito cuidado por parte dos Mbya por conta do mito de Piragui. Após as invasões vários Guaranis foram capturados e feitos escravos. As mulheres violadas pelos invasores gerando filhos. As baías de Cananéia e de Paranaguá já eram importantes para a coroa invasora desde os primeiros anos, para o escoamento de pilhagem do continente.  Um mercenário alemão que foi capturado pelos Mbya e depois fugiu, ficou famoso não pelos crimes que cometeu, mas pelo livro que publicou contando invenções sobre os indígenas. Hans Staden disse que em 1547, em Superagui, em um lugar isolado havia pessoas brancas morando. Eram provavelmente fugitivos dos navios da coroa. Estas pessoas em uniões forçadas ou não com indígenas formariam o que seriam as comunidades caiçaras da região. 

No século XVI, os oceanos do mundo inteiro tinham navios, caravelas e embarcações transitando. Piratas da Flórida ou do Marrocos tinham um entreposto de contrabando no Superagui. E aproveitavam para arrumar os navios. As Perobas que sofreram com todo esse processo. Perobas são árvores que vivem mais de 600 anos com uma madeira forte e consistente. Não demorou para que portugueses, piratas e outros invasores varressem as Perobas da floresta para construção de móveis e embarcações.  Já existiam trilhas milenares do caminho religioso dos Guaranis. Mas para os ladrões de madeira e minério era complicado atravessar para chegar de uma baía a outra. Havia uma abertura da Baía dos Pinheiros, mas ela acabava perto do rio Ariri. O caminho pela costa também era perigoso. Superagui representava um desafio para os exploradores. Os Mbya sempre o evitaram e sabiam que este desafio era mais profundo do que os brancos poderiam supor.

BRASIL. Mappa das Bahias de Paranaguá comprehendendo a Colônia de Superaguy Entrada do Mar Pequeno de Iguape. Rio de Janeiro: Archivo da S. de Desenho, 1870

 

Já em 1760 havia negociações de abrir um canal de seis quilômetros entre a baía e o rio Ariri para facilitar o trânsito de embarcações. Tentaram abrir com enxadas em 1805, fracassando. Depois os humanos capitães das províncias do estado de São Paulo e do Paraná brigaram. O governo colonial queria a abertura do canal, mas nada aconteceu. Em 1848 tentaram novamente, depois em 1922, mas somente em 1952 é que as obras de abertura do canal começaram. As discussões passaram do tempo de capitania, colônia, império, república para que o canal do varadouro fosse aberto. 

Eu não deveria lembrar de coisas óbvias para você – sapiens que lê -, mas não se modifica assim o curso da natureza sem que isso tenha um preço. Demorou bilhões de anos para que aquelas montanhas se formassem, para que os rios escoassem, os vales e corredeiras e para que as baías fossem daquele jeito. Mas os humanos não indígenas fazem questão de atestar sua falta de inteligência sempre que podem. Não temiam o rancor de Piragui, tampouco as consequências lógicas do fluxo das águas. 

Ararapira é um nome de uma vila dado pelos Guaranis na baía de Cananéia. Significa o lugar de muitas aves e muitos peixes. A partir do momento que o canal foi aberto, Ararapira sumiu. Ao conectar dois rios que ligam ao mar, o que se está fazendo na prática é criando uma ilha. Hoje chamam de Ilha artificial do Superagui. E, com o canal aberto, na primeira maré cheia a água salgada já tomou conta do canal. Os peixes sumiram. Sumiu no significado do nome Ararapira pois os peixes sumiram. Piragui, a sereia guardadora dos peixes, começava a arquitetar a sua vingança. A cidade de Ararapira, que era um gigante entreposto com grandes ruas, escolas, cartórios, comércio e clubes, foi sendo pouco a pouco devorada pela erosão. A abertura do canal criou um regime de corrente diferente e com a maré, rapidamente engoliu a cidade. As casas foram sendo levadas para o fundo do mar por Piragui. Hoje, na vila restam algumas casas e poucas pessoas. E, a agora ilha de Superagui, continua sendo um lugar para se manter cuidado.




11. Sobre beijar as flores

Um dia, repassando o acervo do pai na loja, Andorinha encontrou um livro do Sebastião Salgado e foi capturado. Arranjou uma máquina fotográfica e saiu de bicicleta pela rodovia e estradas de terra para fotografar. O preço para revelar as fotos freou o seu ímpeto às palavras e livros, mas ele colocou na cabeça que faria um curso e um dia trabalharia com isso. No primeiro ano do ensino médio, conseguiu um curso de fotografia de graça em São Paulo e toda semana saía da aula no interior e corria para a capital. Não demorou para começar a fazer algum dinheiro com fotos de produtos para sites. Sua vida amorosa continuava agitada e com uma namorada do grupo dos metaleiros da cidade, aprendeu a transar em lugares inusitados, beber conhaque e 51 de maneira voraz. Ficou dois anos sem falar com o pai quando este lhe ligou para lhe lembrar que havia dormido na calçada na noite anterior. O que de fato acontecera.

Dois anos depois recebeu outra ligação do pai. Daquelas que modificam a vida da pessoa, dado o peso da decisão que se avizinha. O pai disse na linha: “essa cidade não tem perspectiva de futuro, olha o que aconteceu com seu irmão. Se você ficar aí vai ser pior. Vem pra São Paulo, faz um cursinho, entra em alguma universidade. Eu te ajudo”. Analisando a situação, o adolescente voador decidiu que sair do interior era a melhor solução. Foi morar numa suite alugada e fazer cursinho. Logo no primeiro mês de pagar o quarto o pai não tinha dinheiro e Andorinha percebeu que teria de se sustentar sozinho. E, em uma daquelas decisões que modificam o futuro dos fatos, saiu do cursinho e foi fotografar bijuterias para as lojas da 25 de março. Conseguiu com um colega do bar, dono de loja de produtos chineses, todo o estúdio para clicar os brincos, colares e pulseiras. Furtava uma peça ou outra para presentear alguma mulher. Agora morava sozinho na rua da Consolação, sem ter dezoito anos de idade, pagava precariamente suas contas e podia receber os amigos do interior com necessidade e um lugar para levar garotas e transar. Aprendeu a beijar as flores. 

 

11. Vulva retorcida

Começou com olhos fechados. Na proa do pensamento apareciam olhos, muitos olhos, pequenos e diminutos. Lembraram ovas de girinos. Bolinhas úmidas que refletiam a luz nas suas membranas convexas guardando pontos pretos inquietos. Moviam-se como anêmonas sem tirar os olhos de você. De repente, do meio desses olhos um rasgo se faz e emergem dele folhas aveludadas de plantas carnívoras. Uma vulva insinuante como um cacto estrela de pétalas penujadas vermelho vinho. As formas se desdobraram a partir de si em um constante movimento do núcleo para o florescer ao redor. 

O sol saiu de trás das nuvens revelando o vermelho brasa da textura de formas. As vulvas, como línguas de gato, eriçaram seus espinhos e se abriram em fileiras. Um carrossel multicolor subia e descia preenchendo todo o campo de visão. O movimento de um dragão chinês feito de folhas que parecem pétalas e mudam de cor. Seu movimento é irregular e conforme você move a cabeça, as cores das formas mudam e esse fio de DNA espirala. Você tentará escrever sobre isso e não haverá analogia, adjetivo ou competência verbal para narrar as coisas que seus olhos veem. Palavras encaixotam a realidade e a realidade, mesmo, é isso que está nos seus olhos e compõem a sua história. Plantas, cores, montanha russa, vulvas, movimento, flutuação e alucinação. 

 

11. Canoa que brota da terra

Eu, minha família – ou minha espécie, como preferir – carregamos uma dualidade muito curiosa, mas ao mesmo tempo perigosa. Somos árvores reconhecidamente resistentes a condições muito precárias de solos. Conseguimos tolerar bem o sal; conseguimos crescer em lugares com solos pobres e ainda assim, crescemos rápido. Em dois anos já temos mais de dez metros de altura. Por outro lado, viver nestas condições de nutrição faz com que nossas fibras sejam pouco densas, muito leves, fáceis de quebrar e por isso não vivemos muito. Há, no mundo, pinheiros com mais de cinco mil anos. Aqui na mata atlântica os jatobás podem viver mais de quinhentos anos, mas nós, em menos de quarenta anos, estalamos. O tronco racha, estala e caímos. Ainda assim é difícil chegar lá pois ciclones e ventos fortes costumam nos derrubar com facilidade. Somos grandes, leves e estamos sempre de frente para o vento oceânico. Para crescer rápido nós sugamos muito nitrogênio do solo – com a parceria com bactérias Rhizobium -, e muito gás carbônico do ar.  

A madeira fraca também faz com que não tenhamos muita tolerância ao frio. Uma geada até conseguimos sobreviver, mas duas em um ano já é demais. Mesmo vale para secas e estiagens. Precisamos de água constante, mas não lugares alagados. E, por isso, você poderá encontrar parentes meus apenas entre Santa Catarina e o sul da Bahia, o miolo da Mata Atlântica. Ainda assim, não é em todo lugar dessa Mata que estamos. Se você for no lado oeste de uma montanha não encontrará nenhuma família nossa, pois precisamos de muita luz, mas a luz da manhã. Por isso estamos nas encostas viradas para o oceânico atlântico. É fácil reconhecer. No período frio do ano não temos uma folha sequer e nos destacamos na paisagem como raízes de ponta cabeça. No período quente florescemos e pintamos a encosta de amarelo. Essas características de brevidade, capacidade de crescer em lugares pobres faz com que sejamos pioneiras em lugares vazios, abandonados ou desmatados. 

Nossas flores têm os dois sexos. Polinizamos a nós mesmas. Não somos como  alguns fungos que vivem nas minhas raízes que possuem milhares de sexos biológicos. Ou como animais em que cada indivíduo possui um sexo biológico apenas – na maioria das vezes. Nós florescemos com ambos os órgãos, chamamos as abelhas e elas fazem a festa nos ajudando. Aquela amarela e preta sempre está por aí, a abelha mirim-preguiça também vem, jataí também e a irapuá. Mais rapidamente aparecem as mamangavas, mas não gosto muito delas pois elas podem querer furar o nosso tronco para fazer ninho. Aqui no litoral o período ideal para soltar as flores é no final do ano – Ara Pyau –, após as chuvas de inverno. Nossas sementes são frágeis ao ataque de fungos, por isso produzimos muitas. Gastamos o que precisamos gastar de energia para fazer isso. Por essa razão, quando chega o frio, nem folha temos. 

 

Nos últimos cinco mil anos, minha família aprendeu a conviver com seres humanos. Os Guarani vivem na mesma região que nós. A nossa presença com as aldeias. O nome Guapuruvu foi dado pelos guaranis e significa “canoa que brota da terra”. “Uvu” são as coisas que saem da terra e “ubá” é a canoa, então ubáuvu acabou se tornando Guapuruvu. Não demorou para que os Guarani percebessem que uma árvore de madeira leve, tronco largo, que vive pouco e já tem o centro do tronco oco, fosse ideal para construção de canoas. Assim, antes de estalar os guaranis já sabiam qual árvore está mais frágil para cair. Derrubam-na e permitem que uma clareira se abra na floresta para que novas plantas cresçam. Os Guarani também perceberam que o chá de nossa semente é o mais poderoso combate contra picadas de jararacas e cascavéis, as cobras mais peçonhentas da mata atlântica. Centenas de anos depois outro tipo de ciência confirmou essa característica química nossa*

 

 

*Mendes MM, Oliveira CF, Lopes DS, Vale LH, Alcântara TM, Izidoro LF, Hamaguchi A, Homsi-Brandeburgo MI, Soares AM, Rodrigues VM. Anti-snake venom properties of Schizolobium parahyba (Caesalpinoideae) aqueous leaves extract. Phytother Res. 2008 Jul;22(7):859-66. doi: 10.1002/ptr.2371. PMID: 18567056. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18567056/ 

12. Família

Do emprego com bijuterias na 25 de março, para conhecer um jornalista no bar e para fazer uma entrevista no jornal, foi um processo rápido. Trabalhar com fotojornalismo se mostrou o emprego perfeito para Andorinha. Amizades jornalísticas – todas pessoas muito bem versadas na vida boêmia -, mesa de bar, conhecer biografias diversas, histórias e discutir visões de mundo. Visitar outros lugares do Brasil sendo pago pelo jornal para isso. A vida de excessos de Andorinha seguiu. Não era mais um bebedor de garrafas de destilado, mas mantinha na cerveja o hábito social constante, com uma ou outra escapada lisérgica junto aos amigos do passado. Andorinha voou muito e fez ninho com uma jornalista de divulgação científica. Depois com outra. 

A vida sexual das andorinhas é bastante monogâmica. O casal se junta, acasala, têm juntos três a cinco filhotes. Quando estes estão prontos para voar o fazem, mas a família permanece unida formando grandes clãs dentro de um bando. Andorinha não era como os de sua espécie. Com seus vinte e poucos anos e por muito tempo depois, dizia para as mulheres que se relacionava que não desejava ser pai, tampouco casar e que, antes de o relacionamento se desgastar e as pessoas começarem a se agredir, era preferível terminar. Isso o fez ter pequenas relações de um ano, dois ou três sem passar disso. Amou e sorriu…sofreu e chorou… o primeiro caso muito mais que o segundo. A habilidade de construir em conjunto soluções para conflitos e assim enfrentar as dificuldades não fazia parte do repertório de Andorinha até os 35 anos. A semiótica começou a lhe visitar nas discussões e no trabalho. Mesmo com a vida voada – e avoada – se matriculou em um curso de Filosofia que demoraria seis anos para concluir. 

No meio desse caminho descobriu um novo rumo para somar aos sentidos da vida que havia crido edificar. Lecionar. Em alguns cursos esporádicos de fotografia sentiu o prazer de ensinar formas de recortar realidades para clicar e como jovens amam descobrir estas coisas. Depois, em algumas universidades particulares, falando de semiótica e fotografia. A criatura adulta fez sua vida na capital mantendo pouquíssimo contato com pai, mãe e irmão. Diluiu-se em romances e entregou o estatuto de família para seus amigos íntimos. O largo e grande Yuri com quem estudou desde a 6ª série até o 3º ano do ensino médio, e ainda moraram juntos na kitchnet da Consolação. Renata, a amiga das conversas de divã dos tempos de Nazaré Paulista. Fabio, do sebo do pai para as brigas de bar. Francine, a mais longeva relação de Nazaré. Gustavo, o jornalista mais boêmio que existiu – troféu altamente concorrido. Angelita, a contadora de profissão e companheira de loucuras e viagens. E Renato, o físico e professor do estado que conheceu na universidade. 

Voaram dez anos de vida pela capital paulista. Um pouco cansado da rotina e precisando sair, Andorinha pediu ao jornal para ser transferido para outros lugares. Buscava mais tranquilidade. Foi mandado para Mariana como um ponto de apoio correspondente de Minas Gerais. Fotografou o desastre de Brumadinho. Visitou a aldeia Krenak para uma reportagem sobre as consequências do ocorrido em Mariana e os problemas da companhia Vale. Teve muitos ensinamentos ao pé do jenipapo com o povo Borum. A inquietação filosófica sobre outras formas de ler o mundo o fez mergulhar na relação com os povos indígenas.

 

12. A bruxa e a ruína

Era uma bruxa daquelas que outrora foram perseguidas por conhecer por demais sobre a natureza, por saber extrair das plantas – precisamente porque estas lhe cederam conhecimentos – o melhor para os corpos. Essa bruxa em específico, sabia muito sobre os cogumelos. Passou metade de sua vida interagindo com eles e conhecendo seus segredos. E, como toda bruxa, essa cientista olhava dentro dos teus olhos e trazia sabedorias.  Corpo esguio, cabelos curtos e pouco grisalhos, tinha à ponta da cabeça um periquito vivo que repousava no ninho de seu cabelo como faz à um galho. Mais dois periquitos repousavam ao braço direito, como nas imagens de São Francisco de Assis, sendo mais real que as estátuas. Você sentado ao chão tinha a cabeça erguida para vê-la ao alto. Ela olhou no fundo dos seus olhos e soltou as palavras com serenidade. 

Quando você vive muito tempo em um lugar, você aprende a reconhecer as linhas de vida dele. O pertencimento não é uma sensação psicológica. É uma intimidade com os seres não-humanos do lugar que se relacionam com a gente. Um povo que vive na floresta desenvolve um tipo de conhecimento cinético sobre as coisas. Um conhecimento de como navegar por entre cheiros, sons, vistas, sensações. Penetrar em uma região da mata em busca de um favo de mel exige sentir a mudança de calor, reconhecer espécies, sentir cheiros, identificar aves e ruídos. É uma ciência intuitiva que aguça todos os sentidos e relação a todos os outros seres. É ao mesmo tempo uma ciência, uma apreciação e uma imersão apaixonada.  

Porque eu digo isso? Hoje, você sabe muito bem, quanto mais as pessoas mudam de lugar para morar, mas elas deixam de desenvolver essa ciência. Ficam reféns das rotinas e deixam de desenvolver conhecimento. Os povos da floresta tem muita ciência para ensinar. O mundo que a gente vive está na beira do abismo. Uma era de extinção. As paisagens de hoje estão repletas de ruína. Mas, acredite, esses lugares podem ser reanimados apesar dos anúncios de sua morte. Há beleza nos lugares abandonados. Eles podem gerar novas vidas multiespécies e multiculturas. Eu escolhi as ruínas das florestas industriais para fazer minhas pesquisas. Eu procuro a emergência da vida nos destroços do mundo. E é possível achar relíquias. Requer tempo, mas é exatamente isso que querem que nós não façamos… gastemos tempo. O mundo exige prazos rápidos e tudo que é demorado deixa de ser interessante para essa sociedade. Precisamos ocupar as ruínas para produzir conhecimento, arte, expressão para suportar e para enfrentar o futuro arruinado do mundo. E ocupar é viver junto. Mesmo onde as probabilidades estejam contra nós. É recuperar a vida. Se quisermos viver, devemos aprender a ocupar até os espaços mais degradados da vida na terra. Sem isso, nós definhamos.

 

Mas, antes de ir, me diga seu nome, por favor. Ao que ela voltou a te olhar. Eu não vou embora e nem você. Meu nome: Anna Tsing.

 

12. O terreno

Quando eu pude perceber já estava fixada em um lugar. Há um pequeno igarapé há vinte metros de onde estou. Após o canal já começa a subida da encosta da serra da prata. Na direção do mar está o morro do escalvado. Estou embrenhada no vale da encosta. Há cercas, muros, uma casa e um curral abandonado. Esse lugar foi ocupado por humanos não-indígenas. Prova disso é que das vinte árvores que vivem nesse pequeno pedaço de terra chamado terreno, apenas as seis jussaras e as três jabuticabeiras são nativas da região. A mais velha, a senhora do quintal, que está aqui há centenas de anos, é a araucária.  Uma árvore pouco comum nesta região, mas conseguiu ficar e está aí até hoje, guardando a memória do lugar. 

Ela conta que por décadas viveu um humano na pequena casa em forma de L na quinta no lote. Esse homem esteve acompanhado por anos e plantou muitas frutas, principalmente cítricas, mais duas goiabeiras, duas mangueiras. Estas últimas, coitadas, vivem pedindo ajuda por debaixo do solo, mas nem os fungos conseguem fazer com que elas floresçam e dêem frutos. Vivem há anos presas no chão arenoso e pouco fértil do terreno. O casal também fez um curral onde mantinham presas várias galinhas, cinco codornas, um cabrito, dois leitões e uma vaca leiteira. Era um rancho também com uma horta e dois pergolados com uvas. Na entrada do rancho havia ainda uma palmeira real, a quem as outras palmeiras, finas e delgadas, sempre olharam com desconfiança. As palmeiras reais vêm de longe, ficam gigantescas e chamam muita atenção dos canários, embora os tucanos do bico verde, amigas das jussaras, não trocassem elas pelos frutos da palmeira imperial. Mas as abelhas gostam mais de suas flores. Ainda é uma palmeira imperial bem jovem. Não chega a ter 4 metros de altura e, se crescer com força, poderá ultrapassar os quarenta metros de altura. 

A partir de uma certa época o homem não estava mais acompanhado. Passou a viver sozinho. Vagava pelo terreno olhando para o céu e as montanhas. Alisava algumas árvores como se lembrasse de algo. Aos poucos os bichos foram sendo mortos, o mato foi crescendo, as frutas caiam no quintal. As bananeiras se alastraram atrás do curral. O homem tinha muita dificuldade para andar. A araucária o respeitava pois estimava que ele já devia estar perto dos 100 anos e seguia só no terreno. Com essa idade, esse humano e a araucária passaram mais de meio século convivendo juntos. Até que ele parou de aparecer. O mato cresceu, as telhas do curral foram caindo e a casa não recebia mais ninguém.


13. Ninhos

Com a chegada da pandemia foi morar em São Luis do Maranhão onde, pouco tempo depois foi demitido do jornal e decidiu ficar por lá, isolado e refletindo na vida. Passou meses ouvindo muito pouco a sua própria voz. Fazia algumas lives de bebedeira com amigos próximos. Comprou um violão – o Haroldo – para lhe acompanhar. Conheceu de perto a realidade complexa dos conflitos agrários daquele estado. A intrusão madeireira e a luta dos Guajajara, Krikati, Awa Guajá e Kanela o levaram para um ano de leituras sobre povos indígenas e quanto mais lia sobre o seu modo de vida, mas uma ideia se insinuava dentro de sua cabeça. Um projeto de vida que trouxesse junto tudo aquilo que ele desejava. Uma vida mais pacata, um contato mais próximo com povos indígenas, com o litoral. Fotografia, filosofia, docência e plantas tudo em um mix de ideias difíceis de explicar. 

Decidiu que compraria algum pedaço de terra na cidade, faria uma casinha simples para morar e receber amigos. Com o restante do lote, acompanharia semana a semana, registrando, fotografando, escrevendo, tomando dados sobre  como as plantas tomariam conta daquele lugar degradado. Falaria com os povos indígenas da região para entender a dinâmica ecossistêmica do lugar para, quem sabe, inserir espécies que ajudassem na regeneração. Nos planos, faria isso por muitos anos. Até o fim da vida. Por, pelo menos, cinquenta anos. Viveria de dar aulas de filosofia ou de fotografia como aprendeu a fazer. “Mas eu te conheço, você logo vai se encher e vai mudar, você é sempre assim “, argumentava sua amiga. Ela tinha razão, ele pensava, mas talvez este projeto fosse aquilo que precisava para se fixar, parar de rodar e mudar de vida. No fim, respondia, “mesmo que eu não faça as fotos todos os dias, pelo menos terei cedido uma parte de uma propriedade privada para virar floresta”.

Estabeleceu alguns parâmetros básicos de cidades e regiões que poderia morar e desenvolver o projeto. Pesquisou muitos terrenos em cidades com uma infraestrutura razoável, proximidade de centros urbanos, metragem mínima e preços acessíveis. Encontrou um terreno preciso no litoral do Paraná. Organizou sua mudança – que depois de muitos anos, desfazimentos, doações de livros, máquinas fotográficas e eletrodomésticos, se resumia a uma mala de roupas e um violão -, e mudou-se para o litoral do Paraná. Visitou o terreno no pé da encosta. Chegou no meio do inverno, quando as cidades são desertas, reparou nos guapuruvus desnudos emoldurando a paisagem da mata atlântica no paredão rochoso. Pareciam raízes de cabeça pra baixo. Lembrou da canção de Raul Seixas sobre a cidade de cabeça pra baixo. O morro do escalvado guardando a praia lhe hipnotizou. Apaixonou-se pelo lugar. Era perfeito. “É aqui!”. E depois de muito tempo Andorinha ia fixar morada. E ele nem tinha recebido este apelido. Isso tudo era apenas o começo de uma outra história.

13. Oferta

 Parecia uma bolsa para guardar moedas. Mas pela espessura não deve ser para isso, você pensa. Azul marinho com zíper prateado e espessura feita para comportar máquina fotográfica da Tekpix. O que teria dentro dela, entretanto, você não tem ideia. Quem oferta essa bolsa não diz a razão, tampouco pergunta se pode ou não fazê-lo. O rosto da figura não se vê. Você levanta os olhos e os arremessa sobre o rosto da pessoa. Apesar disso, apenas uma forma vaga e fosca o visita. Tal qual se vê através de vidros de banheiro, você, no máximo, consegue distinguir cores. Mas como sempre desconfiou da sua capacidade de enxergar do mesmo modo que as outras pessoas, essa informação dos sentidos tampouco lhe aplaina o juízo.

Cabelo preto e pele bege. Como em um corte de filmagem no qual aparece apenas a perna e a cintura por quem vê, deste ângulo, você vê uma calça jeans azul e um pedaço de camisa branca. A mão que oferece tem dedos esguios e gastos com as unhas em natural e sem nenhum sinal de que por lá passara dentes de quem as roa ou esmaltes de quem as pinte. “Pegue, isso é para você” diz a voz. 

Muitos dias, diferentes ocasiões e a cena se repete. O que te procura quer algo. O que te preocupa não é a natureza da bolsa. Porque? Não é uma oferta. A voz é imperativa demais para conter escolhas. E te magoa não saber qual decisão tomaria. Você não se recorda de qual decisão tomou, se pegou o objeto. Qual o seu peso ou textura? Não há informação sobre isso na varredura de sensações que você é capaz de produzir. O que há lá dentro?  Sem resposta, você decide criar uma para si, como acontece com a realidade que criamos para viver. “Estão prestes a me oferecer algo. E eu vou aceitar!

13. O fotógrafo

Estou contando a história do lugar que eu nasci, tal qual, Araucária, a senhora do quintal, me fez conhecer. É, de certo modo, a história dos seres que convivo. Preciso saber do meu passado para aferir o futuro. Assim, depois de um tempo sem presença humana, apareceu no terreno um outro homem. Muito mais jovem que o homem centenário recentemente desaparecido. Esse mais jovem quando veio pela primeira vez estava acompanhado. Ficava apontando para direções aleatórias interagindo com a pessoa. Depois passou a vir com mais frequência. Às vezes com outras pessoas, às vezes só. Sempre tirava fotos do lugar e de cada uma das árvores, por isso recebeu o nome de fotógrafo. Então algumas coisas começaram a mudar. Cortaram a grama, desmontaram as pérgolas e com as vigas delas, reforçaram a cerca arame que estava tomada pelos hibiscos. Depois os muros do terreno foram aumentados. Definitivamente parecia ser esse homem o novo frequentador do pedaço de terra cercado. O substituto do velho centenário. 

A Araucária, senhora do quintal, conta que depois de um longo silêncio, as vinte árvores do terreno começaram a notar com mais cuidado a presença do fotógrafo. É sabido que um dos prazeres mais recônditos dos humanos é cavar terra e abocanhar a montanha, cortar árvores e substituí-las por concretos feitos de montanhas moídas. Planificar a montanha sobre a carne viva da floresta. Assim, logo que a grama foi cortada, a palmeira foi transplantada, os sinais micorrízicos de alerta se intensificaram e as plantas modificaram a sua fisiologia. 

O que será que estaria prestes a acontecer? Deveriam se preocupar? As árvores são exímias previsoras do futuro, sobretudo na presença de uma centenária araucária refugiada dos pampas. Para crescer ali, orfã, precisou aprender a lidar com o vapor oceânico e com a voracidade do homem não-indígena. Havia muito poucos indícios para saber se a comunidade do terreno corria risco. Decidiram então, em assembleia, lançar mão de estratégias a fim de descobrir se o fotógrafo representava uma ameaça ou não. Cada árvore, dentro das suas possibilidades, colaboraria com algo e, ainda que nada pudessem fazer, muito se podia ser apreendido acerca daquele indivíduo. 

As mangueiras, por exemplo, não tinham nada a oferecer, mas só o fato de o fotógrafo ter notado mais uma das tentativas fracassadas delas de florescer, já o colocava na posição de tomar uma decisão que pudesse ajudar. Qualquer pessoa sabe que uma mangueira que não dá frutos precisa de adubo no solo. Se o fotógrafo colocasse, talvez significasse, ao menos para as mangueiras, um cuidado. Mas o fotógrafo nada fez. Podia, entretanto, o sujeito não ter conhecimento disso. Então, em um dia de ciclone, a juçara mais jovem que estava perto da mangueira, deixou-se tombar. Ela não estava bem de saúde e apenas não resistiu. O palmito da juçara é algo muito apreciado entre humanos. É onde se concentra boa parte da energia da planta para liberar as flores ou os frutos. Um palmito derrubado no seu terreno, sem a necessidade de cortar o duro caule é uma oportunidade e tanto. Se o fotógrafo coletasse o palmito, isso mostraria que ele entende mais sobre as plantas do que suas fotografias podem revelar. Mas o fotógrafo nada fez. Olhou de longe, chegou perto, chegou a encostar no corpo caído e seguiu adiante. Podia, entretanto, o sujeito não saber se era ou não uma juçara, e pela dúvida, refugar. 

Então, a bananeira que estava em estágio mais avançado pôs-se a madurar o seu cacho. Uma ação arriscada, dado que essa operação atrai muito mais rapidamente os pássaros. Mas, sabia que humanos precisam comer, e todos sabem o que é uma banana, e ainda mais o que é uma banana madura. Se o fotógrafo visse a banana madura e não comesse isso seria um mal sinal. Afinal, quem não se dispõe a comer algo que contém em altas quantidades a maior relíquia que a vida necessita – o potássio – só pode ser muito desajuizado da vida. E, o potássio em humanos, além de ajudar nos músculos, permite ao cérebro maior fluxo de oxigênio. Mas o fotógrafo nada fez. E era exatamente de mais potássio que aquele cérebro humano precisava. Não se dispensa assim uma dose de comida tão rica. Não havia nenhuma desculpa. A comunidade já sabia algo sobre o fotógrafo: ele nada faz.

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